Comentário à Fórmula Atual de Profissão Solene do Carmelo
Por Frei Sérgio Estefane, O. Carm,1
O Objetivo deste artigo é estudar e meditar sobre o rito e a fórmula da profissão solene da Ordem do Carmelo, compreender melhor a natureza da vida consagrada e o verdadeiro significado da fórmula atual da Profissão Solene2 no Carmelo.
FÓRMULA DE PROFISSÃO (clique aqui)
Eu, Frei N.N., animado de uma fé viva e de uma vontade firme, consagro-me totalmente a Deus e comprometo-me a viver sempre em obséquio de Jesus Cristo, imitando os exemplos sublimes da Virgem Maria, do profeta Elias, nosso Pai, e dos santos carmelitas. Por isso, em comunhão com o Reverendíssimo Prior Geral, P.N.N., e com os seus sucessores, na presença dos meus confrades, nas vossas mãos, P.N.N., Prior Provincial, faço voto de Obediência, Pobreza e Castidade para sempre a Deus, segundo a Regra e as Constituições da Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo. Com esta profissão solene na Ordem Carmelita, com a graça d’Aquele que me chamou a segui-Lo mais de perto e guiado pela luz e força do Espírito Santo, ofereço-me a Deus e aos meus irmãos e irmãs para chegar, sob o olhar de Maria, nossa Mãe e Irmã, à perfeição da caridade ao serviço do Reino de Deus e da sua Igreja.
Quando dizemos: Eu, Frei…
No rito próprio que precede a profissão, há momentos de chamamento3 e interrogatório4, nos quais o candidato é chamado pelo seu próprio nome, do seu batismo. Por isso, na fórmula da profissão solene, quando se diz eu, frei (nome), refere-se que tal como na resposta ao interrogatório, a profissão é um ato pessoal, mesmo que existam vários candidatos a fazer a profissão na mesma celebração litúrgica. Portanto, a inserção do nome próprio enfatiza isso, como outrora, Deus escolheu os seus profetas5, com um imenso respeito pela dignidade de cada um: “Chamei-te pelo teu nome tu és meu” (Is 43,1).
Quando dizemos: animado pela fé viva e de uma vontade firme…
A profissão, como o próprio nome indica, é um ato de fé. Por exemplo, na Missa fazemos a profissão de fé, a fé como relação viva e pessoal com Deus. É dessa relação pessoal que nasce a consciência de ter vocação e a resposta, sendo que a vocação é acolhida com fé e respondida com fé, isto é, com plena adesão a Deus e entrega a Ele. Essa fé não é entendida apenas como anuência intelectual, mas como aceitação de Deus na própria vida e entrega de si mesmo a Ele. Como a fé, a profissão tem de ser uma decisão livre e decisiva.
Quando dizemos: consagro-me totalmente a Deus e comprometo-me…
Na profissão, a consagração é ascendente. Consagração ascendente (eu consagro-me a Ele), o “mais” característico da vida consagrada, porque pelo batismo já somos consagrados por Deus para pertencer a Ele (consagração descendente). No rito da profissão este aspecto descendente da consagração é o tema próprio da oração de consagração após profissão6, mas a própria profissão é a consagração de mim mesmo a Ele; por fim, o advérbio “totalmente” indica a especificidade da vida consagrada, que é uma consagração total, ainda que encontre a sua raiz na consagração batismal; torna mais radical a consagração batismal de si mesmo a Deus.
Quando dizemos: a viver sempre em obséquio de Jesus Cristo
É o seguimento de Cristo com terminologia especificamente carmelita, retirada da Regra, que diz: “Muitas vezes e de muitos modos os Santos Padres estabeleceram que, cada um, qualquer que seja o estado de vida a que pertence ou a forma de vida religiosa que tiver escolhido, deve viver em obséquio de Jesus Cristo e servi-Lo fielmente de coração puro e boa consciência” – RC 2. O “em obséquio de Jesus Cristo” indica pertença completa, obediência e fidelidade a Cristo; e a qualificação “sempre” indica a definitividade da profissão solene, isto é, não há volta a dar7, e implica simultaneamente fidelidade absoluta.
Quando dizemos: imitando os exemplos sublimes da Virgem Maria, do profeta Elias, nosso pai, e dos santos carmelitas…
Ao se mencionar primeiro Maria e Elias, deixa-se claro a ideia tradicional de que essas figuras são os principais modelos da vida carmelita; são os principais modelos inspiradores do Carmelo, sobretudo pela virgindade consagrada, mas a eles se somam como exemplos, a colmeia dos nossos santos, que por graça divina nos antecederam e viveram a experiência do mesmo carisma.
Quando dizemos: Por isso, em comunhão com o Reverendíssimo Prior Geral… e com os seus sucessores
Nos tempos antigos, tanto desde a Idade Média como até ao Vaticano II, eram feitas profissões a Deus, à Virgem Maria e ao Prior Geral8. A profissão feita a Maria era característica das Ordens que na Idade Média se dedicavam à reforma, e incluía todas as Ordens Mendicantes. Os dominicanos mantiveram-na, mas nós (carmelitas), que nos chamamos Ordem Mariana, já não o fazemos (mas há uma bela referência a Ela abaixo); também era feito ao Superior porque ele representa Deus (cf. RC 4).
Portanto, na fórmula atual, recentemente renovada, a profissão faz-se em comunhão com o Prior Geral como sinal da unidade da ordem; na fórmula em uso depois do Vaticano II não estava lá e muitos insistiram que faltava o sentido de uma Ordem única e universal.
Quando dizemos: na presença dos meus confrades…
Como em todos os contratos públicos, a presença dos confrades representa as testemunhas vivas e oculares desta aliança entre Deus e o recém- professo; eles representam também a Ordem, porque a profissão é um duplo contrato, com Deus e com a Ordem.
Quando dizemos: nas vossas mãos […] Prior Provincial
O Prior provincial é aquele que é responsável pela aceitação da profissão que é feita a Deus numa determinada família religiosa, da qual o Prior provincial é representante (cf. Constituições 2019, n. 166 §§ 1-2); a sua presença é também importante porque o voto de Obediência a Deus o implica como seu representante.
Quando dizemos: Eu prometo
A origem etimológica da forma prometo, do latim promitto, significa “afirmar previamente que se vai cumprir, dar ou realizar algo”; significa ainda “dizer ou escrever um compromisso em relação a algo – comprometer-se”. Sendo assim, na fórmula da profissão refere-se a um voto, que é uma promessa solene feita a Deus, que vincula a pessoa que o faz, um voto que é feito apenas a Deus; é falado como um “voto” no singular, porque não são promessas de coisas separadas, mas um voto de uma vida de Obediência, Pobreza e Castidade, de acordo com a Regra e as Constituições.
Quando dizemos: de Obediência, Pobreza e Castidade
O seguimento de Cristo, que caracteriza a vida consagrada, é uma imitação da forma de vida de Jesus, caracterizada de modo específico pela Obediência, Pobreza e Castidade. Nos tempos antigos, apenas o voto de Obediência era feito, porque incluía todo o resto.
Depois do Vaticano II, os documentos da Igreja dão primazia à Castidade, uma vez que o celibato em prol do Reino de Deus, a entrega da própria vida a Deus, amado acima de tudo, sempre foi a essência da vida Consagrada.
Nós, carmelitas, nas constituições vigentes desde 2019, assumimos a ordem tradicional com Obediência em primeiro lugar, para enfatizar o preceito fundamental de nossa Regra, que diz respeito a todos os religiosos, de “viver em Obséquio [obediência] a Jesus Cristo” (cf. RC 2), preceito que tem uma cor particular na Ordem do Carmelo.
Quando dizemos: segundo a Regra e as Constituições da Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo
A forma de vida de Cristo, caracterizada pelos três votos, que o neo-professo se compromete a viver por profissão solene, concretiza-se num instituto particular. Embora o Evangelho permaneça sempre a norma suprema de vida que deve ser seguida, a Regra e as Constituições próprias do Carmelo indicam um modo particular de vivê-lo, segundo um carisma específico. A Regra, aprovada pela Igreja, é o texto mais autêntico e autorizado que delineia o carisma e a espiritualidade da Ordem.
Quando dizemos: Com esta profissão solene na Ordem Carmelita […] Ofereço-me a Deus e aos meus irmãos e irmãs
Além da consagração a Deus (consagração ascendente a qual referimos acima), a profissão solene é também uma entrega, isto é, o dom definitivo (perpétuo e solene) de si mesmo a uma família religiosa, que doravante se torna a própria família (cf. Const. 2019, nº 166, § 2).
Quando dizemos: Com a graça d’Aquele que me chamou a segui-Lo mais de perto e por obra do Espírito Santo
Aqui há uma ideia clara do Primado de Deus na vocação de quem professa, na qual agora entrega de forma incondicional o seu coração a Deus, isto é, vida e suas forças (cf. Dt 6,5), conformando a Jesus os seus sentimentos (cf. Fl 2,5).
Portanto, Deus, que tomou a iniciativa do chamamento e que agora consagra o frade a si mesmo, com a ação do Espírito Santo, continua a acompanhar a vida quotidiana da consagração específica da vida consagrada (“seguir Cristo mais de perto”, isto é, mais radicalmente), dando-lhe força para se doar generosamente, superar as dificuldades e permanecer fiel a Deus, à Igreja e à Ordem; Isto exprime-se muito claramente na oração consecratória. Deve-se estar consciente disso e nunca confiar nas próprias capacidades, mesmo que confiar à graça não signifique passividade, mas exija empenho concreto e vigilância progressiva e contínua.
Quando dizemos: sob o olhar de Maria, Nossa Mãe e Irmã
Maria, primeira e perfeita discípula do seu Filho (cf. Jo 2, 1-12), é o modelo supremo de seguimento de Cristo para cada cristão; a sua consagração a Deus na virgindade, embora fosse a verdadeira esposa de José (cf. Mt 1,18-25), fez dela o modelo supremo de discipulado na vida consagrada.
Para o Carmelo Maria é também o modelo num sentido carismático, ela é uma modelo inspirador (irmã mais velha). Maria é também mãe da Igreja e do Carmelo em particular, intercede por nós e colabora misteriosamente com o Espírito Santo para a nossa transformação em Cristo, gerando-O em nós (cf. São Tito Brandsma, Beleza do Carmelo, 66); a expressão “sob o olhar de Maria” é muito bela, pois indica a sua proximidade como Mãe e Irmã, mas também a sua proteção e orientação para viver o que prometemos na profissão.
Quando dizemos: para alcançar […] a perfeição da caridade
Já ouvimos e lemos muitas vezes a expressão: “Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1Jo 4,16)9, e diz ainda o evangelista João: “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus; e qualquer que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,7-8). A expressão que dizemos na profissão, faz-nos perceber que o amor perfeito a Deus, que inclui o amor ao próximo, é a meta da consagração ascendente, como é da vida cristã em geral, porque o amor perfeito significa amor generoso, abnegado, capaz de esquecer e sacrificar-se por Deus e pelos outros.
Quando dizemos: ao serviço do Reino de Deus e da sua Igreja.
Não há dúvidas de que Jesus é o profeta anunciador do Reino de Deus (cf. Mc 1, 14-15), e servidor da Igreja por Ele fundada (cf. Mt 16,18); quando entendemos isso e que a nossa vocação é um serviço a Deus e à Igreja, a consagração religiosa (com tudo o que implica) segundo o seu próprio carisma (com tudo o que implica) fazem do neo-professo (frade) um colaborador fiel na vinda do Reino de Deus (obra de Cristo Redentor para trazer a humanidade e toda a criação de volta a Deus); mas quando Deus deixa de ser o centro da nossa consagração (cf. Mt 6,19), outras realidades passam a ocupar o lugar Dele.
Deus e o seu Reino, do qual a Igreja é o princípio, serão servidos precisamente pela nossa colaboração no mistério da Redenção, segundo a nossa forma de vida e o nosso carisma. A vida religiosa não pode fechar-se sobre si mesma em complacência consigo mesma. Ela deve ser muito clara sobre o seu objetivo último de servir a Deus e à Igreja e de viver de tal forma que o seja concreta e visivelmente. A dimensão eclesial é, portanto, uma característica muito forte dos nossos santos (Santa Teresa de Jesus, Santa Maria Madalena de Pazzi, Santa Teresa do Menino Jesus, São João da Cruz, são os exemplos mais ilustres, mas não são os únicos).
Por fim, o rito sugere fortemente, embora não obrigue, que o professo coloque a fórmula da profissão no altar e a assine10. É um gesto significativo porque destaca duas coisas: a profissão como oferta de si mesmo juntamente com a oblação de Cristo; e a natureza contratual da profissão.
- Frei Sérgio Estefane Simone, é carmelita de Moçambique, membro da Província Carmelitana Pernambucana: Mestre em Teologia, com especialidade em Teologia Espiritual pela Pontificia Facoltà Teologica – Pontificio Istituto di Spiritualità – Teresianum, Roma 2019-2021); doutorando em Teologia Espiritual no mesmo Instituto (2024). ↩︎
- Perguntemo-nos: há diferença entre profissão “solene” e profissão “perpétua”? Vejamos: normalmente, se prefere reservar o termo profissão “solene” para a adesão definitiva de um homem ou uma mulher a uma Ordem religiosa, enquanto para aqueles que entram definitivamente em uma congregação religiosa ou num instituto secular é mais falado como profissão “perpétua”. Esta diferença teve a sua raiz na distinção entre votos simples e votos solenes (hoje completamente obsoletos, tanto que o atual Código de Direito Canónico nem sequer o aborda: os primeiros votos não têm uma repercussão civil, os segundos têm. Por exemplo, se um religioso que tivesse proferido votos solenes tivesse então contraído matrimónio ou tivesse feito a compra de imóveis, esses atos teriam sido inválidos mesmo do ponto de vista civil, e a autoridade pública compromete-se a protegê-los. Caso contrário, se esses atos jurídicos tivessem sido praticados por um religioso que tivesse feito apenas “votos simples” (mesmo com profissão perpétua), os mesmos atos teriam sido ilícitos para a Igreja, mas não inválidos em si mesmos. Não é por acaso, de facto, que as congregações religiosas, nas quais os conselhos evangélicos são professados “de forma simples”, nasceram sobretudo após a Revolução Francesa (1789 e 1799) e a consequente separação entre Igreja e Estado (França, Lei de 1905). Hoje, tanto do ponto de vista canónico como litúrgico, não há distinção entre profissão “solene” e profissão “perpétua”, exceto no uso que os vários institutos religiosos fazem de um termo em vez de outro. ↩︎
- No rito da Profissão: Proclamado o Evangelho, o celebrante e o povo sentam-se. O professante fica de pé. Então, se parecer bem ou as circunstâncias o pedirem, o diácono ou o formador chama pelo seu nome do professante, e este responde: Presente. ↩︎
- Seguidamente, o celebrante interroga o professante, com estas palavras ou outras semelhantes: Meu irmão (filho): (nome) que pedes ao Senhor e à sua Santa Igreja? […]. ↩︎
- Deus conhece-nos e ama-nos desde sempre e para sempre. O seu projeto de salvação passa, não só por nos retirar da falsidade de uma vida centrada em interesses mesquinhos, mas também por fazer, de cada um de nós, instrumento de salvação para os outros ↩︎
- Eis a parte da consagração descendente: “Olhai, pois, com bondade, Senhor, para este vosso servo, a quem chamastes por especial providência, e derramai sobre ele o Espírito de santidade, para que, com a vossa ajuda, seja fiel para cumprir com a vossa graça na alegria do seu coração. Medite cuidadosamente sobre os exemplos do divino Mestre, a fim de imitá-los assiduamente. Senhor, fazei resplandecer n’Ele a castidade perfeita, a pobreza alegre e a obediência generosa. Pela humildade vos agrade, com coração submisso vos sirva e, pelo fervor da caridade, vos adiram. Sede pacientes na tribulação, inabaláveis na fé, alegres na esperança e fecundos no amor. Que o seu modo de vida edifique a Igreja, promova a salvação do mundo e apareça como sinal luminoso dos bens celestiais. Senhor, Santo Padre, guia e protege este teu servo; e quando Ele comparecer perante o tribunal do vosso Filho, sê recompensa e recompensa para Ele, para que sinta a alegria de ter vivido a sua vocação e, confirmado no vosso amor, possa desfrutar da companhia dos vossos santos e glorificar-vos com eles para sempre”. ↩︎
- Constituições 2019, nº 424: “Um frade professo solene não peça o indulto de deixar a Ordem a não ser por causas gravíssimas, ponderadas diante de Deus. Apresente o seu pedido ao Prior Geral, o qual, acompanhando-o com o seu voto e do seu Conselho, o remeterá à Santa Sé, à qual está reservada a concessão de tal indulto”; cf. can. 691. ↩︎
- Por exemplo a fórmula da profissão dos anos 1800, assim começava: “Ego frater … facio professionem mea, et promitto Obedientiam, Paupertatem, et Castitatem DEO, et BEATAE MARIAE VIRGINI DE MONTE CARMELI, et Reverendissimo Patri […] Priori Generali Frattrum Ordinis ejusdem…”. ↩︎
- BENTO XVI. Carta encíclica Deus caritas est. Aos bispos aos sacerdotes e diáconos às pessoas consagradas e a todos os leigos fiéis do amor cristão, Roma 2005, nº 1. ↩︎
- Cf. O ritual da profissão, depois da Ladainha a parte PROFISSÃO, há uma rubrica logo a seguir que diz: “O professante aproxima-se do celebrante e lê a fórmula da profissão, escrita previamente pelo próprio punho. Em seguida, recomenda-se que o professo deponha a carta da profissão sobre o altar. Depois, se se puder fazer comodamente, assina sobre o próprio altar a ata da profissão, e volta para o seu lugar”. ↩︎