UM MÁRTIR DA NOSSA FAMÍLIA: ISIDORO BAKANJA
LIVRO: Carbonnelle: Bakanja Isidore: Martyr de chez-nous.. Editions Saint Paul Kinshasa (África) 1979. (Tradução de Frei Pedro Caxito O.Carm. In Memoriam)1

- UM MÁRTIR DA NOSSA FAMÍLIA: ISIDORO BAKANJA
- CAPÍTULO I: “E aí entregar-vos-ão aos suplícios e vos matarão” (Mt 24,9).
- CAPÍTULO II: “Se permanecerdes fiéis à minha Palavra, sereis realmente meus discípulos; ficareis conhecendo a verdade e a verdade tornar-vos-á livres” (Jo 8,31-32).
- CAPÍTULO III: “Olhai que vos estou enviando como ovelhas para o meio de lobos” (Mt 10,16).
- CAPÍTULO IV: “Vão odiar-vos por causa do meu nome, mas quem perseverar até o fim será salvo” (Mt 10,22)
- CAPÍTULO V: “Se o deixarmos continuar assim, todos vão acreditar nele” (Jo 11,48)
- CAPÍTULO VI: “Vão prender-vos, perseguir-vos, jogar-vos na prisão (…). Para vós será a oportunidade para dardes testemunho a meu respeito” (Lc 21, 12-13).
- CAPÍTULO VII: “Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; estava nu e me vestistes; estava no cárcere e fostes ver-me” (Mt 25,35-36).
- CAPÍTULO VIII: “Tudo o que está escondido será descoberto; tudo o que está em segredo será revelado” (Mt 10,26)
- CAPÍTULO IX: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo não cair por terra e não morrer, há de ficar sozinho” (Jo 12,24)
- CAPÍTULO X: Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo, carregue a sua cruz e siga-me. Porque quem quer salvar a sua vida vai perdê-la; quem perder, porém, a sua vida por causa de mim há de reencontrá-la” (Mt 16,24-25).

Carta do Sr.Arcebispo de Mbandaka-Bikoro
Caros leitores amigos
Ao chegar a Mbandaka, em setembro de 1976, como a maior parte de vós, eu ignorava não somente o martírio de um leigo do nosso meio, mas até mesmo o nome dele, cuja causa de Beatificação hoje foi aceita em Roma: BAKANJA Isidoro.
Mas logo depois fui interpelado a respeito e interessei-me.
Primeiro foi em Mbandaka, no dia seguinte após a minha chegada, por ocasião de um encontro de catequistas, que manifestavam ao Sr. Arcebispo, Dom P. Wijnants, meu predecessor, o seu vivo desejo de ver reexaminada a causa de Bakanja.
Depois foi por ocasião da minha primeira visita pastoral na região de Bokote. Os cristãos frequentam sempre piedosamente os diversos lugares onde o mártir sofreu e passou os últimos momentos da sua vida. Acabavam de reencontrar e desobstruir o sítio da sua sepultura e tinham organizado uma romaria – a primeira – ao túmulo do mártir. Com enorme emoção dela eu participei. Igualmente inclinei-me sobre o dossiê que o Arcebispado possui.
Em 1913, a pedido da 3ª Assembleia dos Superiores Eclesiásticos do Congo Belga , Dom Camilo VAN RONSLE tinha ordenado uma investigação profunda sobre as circunstâncias do martírio deste jovem cristão, trabalhador simples de uma plantação SAB de Ikili. Uma investigação minuciosa foi levada avante pelo Padre Missionário itinerante da região que interrogou europeus e congoleses, as mais pequenas testemunhas, ativas e passivas, do drama que provocou a morte trágica de Bakanja.
A guerra de 1914-1918 que interrompeu toda comunicação com Roma, a situação política do após-guerra deixaram em vigília o Processo de Beatificação deste herói cristão. Nestes últimos anos o Rdo. Pe. Herman VAN DIJCK M.S.C. dedicou-se a completar o dossiê.
Sinto-me feliz por juntar a esta biografia a tradução da resposta favorável do Cardeal BAFILE, Prefeito da Congregação para a Causa dos Santos.
Possa o exemplo da Bakanja Isidoro incitar todos os cristãos do Zaire a conservar intacta a sua Fé em Jesus Cristo, que sofreu o martírio da Cruz para dar aos homens de todas as raças e de todas as línguas a salvação e a vida eterna.
+ Etsou Nzabi Bamungwabi – Arcebispo
CAPÍTULO I: “E aí entregar-vos-ão aos suplícios e vos matarão” (Mt 24,9).
No dia 2 de fevereiro de 1909, numa plantação do Congo, à altura da linha do equador, um diálogo curioso aconteceu entre um branco chamado Longange e o seu empregado negro, Iseboya:
– Iseboya, grita Longange, pegue o seu fuzil e vá matar Makando , este animal de “mon père” (oyo nyama na monpère). (…)
– Bakanja, – é Iseboya quem chama – venha comigo até onde está o branco (Longange); ele está chamando você; ele me deu ordem para matar você, mas isto não vou fazer; é melhor
você mesmo ir até a casa do branco. (…)
– Branco, diz Bakanja a Longange, por que você me chamou ?
– Cale a boca ! – responde Longange enraivecido. Já estou cheio das manhas de você ! Se continua assim, todos os meus homens vão escutar as invencionices de você, vão querer o batismo e aí ninguém mais vai querer trabalhar ! É só mentira o que você ensina a eles como todas essas orações que você vai buscar na casa de “Mon Père” !… Vamos, deite-se para levar umas chicotadas !
Antes de continuarmos a narração, será útil analisarmos um pouco o contexto social e religioso desta época colonial de antes da guerra de 1914-1918.
* * *
No dia 23 de fevereiro de 1885, a Conferência Internacional de Berlim reconheceu juridicamente a Associação Internacional do Congo (AIC) como um Estado Independente e Soberano.
A título pessoal o rei da Bélgica, Leopoldo II, tornava-se o soberano do novo EIC (Estado Independente do Congo).
Para fazer render este território imenso, oitenta vezes maior do que a Bélgica, Leopoldo II favoreceu em primeiro lugar a liberdade de comércio assim como foi estipulada pela Ata Final de Berlim. Mas muito depressa os recursos fiscais do jovem Estado independente verificaram-se insuficientes. A luta contra o tráfico negreiro, a defesa das fronteiras, a guerra contra os Madistas, as expedições até o Nilo e a repressão, aqui e ali, de revoltas locais acarretaram pesadas despesas.
Em 1891, Leopoldo II instaurou o regime do “faire valoir direct” , um regime de autofinanciamento. A exploração de todos os recursos naturais, especialmente a da borracha e do marfim, foi confiada a agentes do Estado ou a Companhias concessionárias, e era um monopólio do Estado, que se tornava assim o principal acionista de todas as atividades comerciais do país.
Esta decisão que violentava a liberdade de comércio exigida pela Ata Final de Berlim prejudicava e impossibilitava qualquer sociedade particular. Além disto, este novo sistema já não respeitava mais a legislação social de 1888, que havia fixado as cláusulas e modalidades de trabalho dos naturais do país. Para enfrentar uma economia deficiente e aumentar as rendas, o Estado apropriou-se de todos os benefícios e demonstrou uma exploração excessiva, para não dizer desumana, dos trabalhadores.
Esta situação injusta faz com que se levante uma onda de protestos internacionais, mas somente em 1906 serão tomadas as primeiras medidas para opor uma barreira aos abusos cometidos, um pouco por toda parte, no país. Quando em 1908, no dia 18 de outubro, Leopoldo II realizou a anexação do Congo à Bélgica, um dos primeiros atos do poder colonial foi deter esta exploração abusiva contra os filhos do país. Publicou-se então um certo número de decretos que restabeleciam a liberdade de comércio e condenavam os excessos das companhias concessionárias.
* * *
A SAB (Sociedade Anônima Belga para o Comércio do Alto Congo) era uma destas companhias. Tinha conseguido em concessão, na região do Busira, terras devolutas, quer dizer, não ocupadas pela população local, assim como toda a região compreendida entre os rios Lomela e Salonga, denominada Bush-Bloc. Possuía também feitorias na zona de comércio livre próxima de Coquilhatville (Mbandaka), capital da Província do Equador.
Como as outras companhias, a SAB explorava e exportava borracha e marfim, e muitos dos seus agentes muitas vezes se entregaram a brutalidades quase indescritíveis, a fim de se apoderarem dos produtos e fazer crescer a produção com os maiores lucros possíveis e a menor despesa. É neste quadro que está situado o martírio de Bakanja.
* * *
Com a preocupação de evangelizar e civilizar, Leopoldo II havia chamado missionários belgas. Em 1888, a Congregação dos Padres de Scheut (CICM) tomava sob seu encargo o Vicariato Apostólico do Estado Independente do Congo (EIC). O Soberano convidou igualmente muitas outras ordens e congregações a virem fundar missões no seu Estado e realizarem assim um trabalho de evangelização.
Por várias vezes os Padres Trapistas (Cistercienses Reformados) de Westmalle, na Bélgica, foram procurados pelo Rei Leopoldo II, mas somente a um pedido explícito do Papa Leão XIII em 1893 aceitaram; e foi assim que os primeiros Padres Trapistas se instalaram, em 1895, em Bamanya, a uns dez quilômetros de Mbandaka.
Os inícios foram difíceis. Muitos missionários morreram ou durante a viagem ou pouco depois da chegada. A missão, contudo, desenvolveu-se: foi, sobretudo, graças aos cuidados constantes prodigalizados às vítimas da doença do sono, numerosas na região, e à educação dada às crianças a eles confiadas que rapidamente os missionários conquistaram a confiança e estima da população local.
Em 1898 batizaram os 25 primeiros cristãos da região, escolhidos entre os jovens que há dois anos eles mesmos vinham educando no seu orfanato. Em 1905 já se podia contar mais de dois mil e duzentos cristãos e destacar quatrocentas famílias cristãs.
Em 1899 foi fundada a missão de Mpaku (Bokuma) e, em 1902, a de Bolokua Nsimba (Mbandaka). A partir desta data a Missão conheceu o seu impulso total. Começaram os Padres a empreender longas viagens apostólicas pelos rios navegáveis: o Momboyo, o Busira e o Ikelemba. Instalaram-se catequistas nas aldeias que solicitavam o ensino da religião. Foi assim que, no princípio de 1909, o catequista Loleka Antônio se estabeleceu em Busira, junto ao posto central da SAB.
Por ocasião destas viagens ao interior, os missionários entraram em contato com os agentes das Companhias e puderam constatar o mau comportamento e freqüentes abusos de poder de alguns dentre eles. Não hesitaram então em denunciá-los mesmo violentamente, atraindo o seu ódio e desprezo, e é o que explica, mas não justifica, a fúria destes agentes contra tudo o que era “monpère”. Na região, “monpère” tornava-se desta maneira um termo pejorativo, empregado por certos agentes das Companhias para designar tudo o que se referisse aos missionários, à Religião e à Igreja .
CAPÍTULO II: “Se permanecerdes fiéis à minha Palavra, sereis realmente meus discípulos; ficareis conhecendo a verdade e a verdade tornar-vos-á livres” (Jo 8,31-32).
Aqui vão os dados que se encontram no Registro de Batismos da Missão de Bolokwa Nsimba sob o nº 1953: Nº 1953 Paróquia de Santo Eugênio – Bolokwa-Nsimba Isidoro MAKANDA Origem: Boangi
Batismo: 6 de maio de 1906
Padrinho: Bonifácio Bakutu
Confirmação: 25 de novembro de 1906
Comunhão: 8 de agosto de 1907
Quem é então este Isidoro Makanda batizado em Mbandaka no dia 6 de maio de 1906 ?
Foi em Bokendela, na tribo dos Boangi, que Isidoro viu a luz do dia. Ninguém sabe a data exata, que está situada nos anos de 1880 a 1890. O seu pai Iyonzwa e a sua mãe Inyuka que já têm um filho, Bokungu, dão ao seu caçula o nome de BAKANJA. Devido a más transcrições do seu nome transmitido oralmente, nos arquivos encontram-se grafias diferentes: Bokando, Makando ou Makanda, que é a que vem assentada no registro de batismos de Bolokwa-Nsimba sob o nº de ordem 1953.
Sobre a infância de Bakanja não sabemos quase nada. Jovem ainda, desce rio abaixo e chega a Mbandaka (Coquilhatville). No Estado, no Departamento de Serviço em Trabalhos Públicos, a inscrição é fácil: há uma necessidade constante de construir novas casas para os técnicos estrangeiros, que não param de chegar, assim como para os trabalhadores nascidos na região. E por conta do Estado agora, Bakanja torna-se servente de pedreiro.
Foi lá que pela primeira vez ouviu falar do Deus de Jesus Cristo. Sem dúvida, como todos os seus compatriotas, ele conhecia Njakòmba ou Mbombiànda , mas o Deus dos cristãos o atrai. E para conhecê-lo melhor, Bakanja inscreve-se no catecumenato junto aos padres Gregório Van Dun e Roberto Brepoels, que residem em Bolokwa-Nsimba. É um catecúmeno assíduo e vai recebendo os sacramentos da iniciação cristã aos interstícios e segundo os costumes da época: batismo a 6 de maio de 1906, confirmação a 25 de novembro do mesmo ano e a comunhão a 8 de agosto de 1907.
O seu padrinho, Bonifácio Bakutu, foi um dos seus primeiros catequistas que, pela fé simples e sólida como a dos Apóstolos e pela integridade da sua vida, é ao seu redor uma testemunha da Palavra Libertadora, que vai transmitindo aos seus catecúmenos.
Depois do batismo, Isidoro não se separa mais do seu escapulário “Bonkotó Malia”, para ele sinal visível do seu novo nascimento, da sua inegável qualidade de filho de Deus. A seguir veremos quanto Isidoro estava agarrado a este sinal, que a todos o apontava como cristão, quer dizer, discípulo de Jesus Cristo.
Todos os que o conheceram por esta época são unânimes em dizer que Isidoro se distinguia pela sua devoção e doçura que lhe mereciam a estima de todos os que o rodeavam. Ousamos dizer que o dom da fé por Deus concedido a Isidoro não foi em vão. A sua fé não será uma fé morta, mas uma fé viva, pois encontra no coração deste recém-batizado o chão favorável para crescer e desenvolver-se: vai conceder-lhe aquela liberdade dos filhos de Deus capaz de fazê-lo seguir a Cristo, seu mestre e modelo, até nas dores da sua paixão e morte injusta e cruel.
CAPÍTULO III: “Olhai que vos estou enviando como ovelhas para o meio de lobos” (Mt 10,16).
Bakanja retorna à sua terra natal. Gostaria de trabalhar junto a um branco, mas o seu amigo Boyoto – trabalhador da SAB em Bomputu e depois catequista em Isongu – coloca-o de sobreaviso:
– Bakanja, não vá com este branco a Ikili, pois o pior vai acontecer com você… Estes brancos lá de cima, das matas, não gostam das pessoas que vêm lá de baixo… Além disto, para você, que é cristão, vai ser pior ainda: estes brancos não gostam dos cristãos !
– Como é que você sabe disto? – replicou Bakanja – Que estes brancos não gostam dos cristãos?
– Quando eu antigamente trabalhava em Bongila – responde Boyoto – havia um cristão chamado Pedro Yanza, que nos ensinava a rezar. Todos ainda éramos pagãos e o branco de lá, de nome Mondele Nganga, encheu-se de uma raiva enorme contra Pedro, porque nos reunia daquele jeito para rezarmos juntos, e proibiu-lhe terminantemente continuar os nossos encontros de oração.
Tendo terminado o seu contrato, Bakanja decidiu deixar Mbandaka e tornar a subir pelo Ruki acima. Está todo alegre por ir ver de novo a sua aldeia natal. Em Bokendela, infelizmente, a Palavra de Deus não foi ainda proclamada, e Bakanja, sentindo-se desolado, vai para Busira: lá vai ter oportunidade de tornar a encontrar, de tempos em tempos, missionários em giro pastoral.
Camilo Boya, seu primo, dá-lhe hospedagem de boa vontade. Bakanja não é uma pessoa preguiçosa e vai procurar trabalho, empregando-se como criado na casa de um branco da plantação, M. Reynders, que tinha o sobrenome de Lomame. Apenas Bakanja se pôs a seu serviço e já o seu patrão recebeu transferência: a SAB enviou-o para uma feitoria do Bush-Bloc, em Ikili, onde se torna adjunto do Sr. Van Cauter, que tinha o nome de Longange. Boyoto Antônio, que ainda não era cristão, tenta em vão dissuadir Bakanja de acompanhar o patrão para o interior:
– O meu branco não é mau, responde Bakanja com muita convicção. Não tenho nenhuma razão para desistir.
– Bakanja, o problema é seu. Mas acredite em mim: os brancos, que estão nas feitorias do interior, não são recomendáveis de modo nenhum e só querem empregados e trabalhadores ingênuos e ignorantes. Você que trabalhou em Mbandaka (Coquilhatville), no Estado, já viu demais e deve ter aprendido muita coisa; você para eles já é sabido demais e não lhes será bem vindo! Torno a lhe dizer: eles só querem trabalhadores sem experiência. De mais a mais, o que torna ainda mais grave o caso de você é que você é cristão. Como é que poderá viver no meio desta gente que não consegue suportar os cristãos?
Os conselhos repetidos de Boyoto não abalaram a confiança de Bakanja no seu patrão Lomame, e com ele Bakanja partiu para Yele. Que tem Bakanja para temer ou perder? Tem dentro de si o Espírito da Fortaleza e da Sabedoria, que lhe relembra as palavras de Jesus: “Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mt 10,28).
CAPÍTULO IV: “Vão odiar-vos por causa do meu nome, mas quem perseverar até o fim será salvo” (Mt 10,22)
Com efeito, bem cedo enfraqueceu-se o relacionamento entre o patrão branco e o novo empregado. E mesmo assim nunca ninguém conseguiu lançar acusações graves contra Bakanja.
Eis alguns trechos do interrogatório de pessoas que o conheceram de bem perto. A sua inocência é evidente.
– Quantos empregados tinha Lomame?
– Dois: Bakanja e eu mesmo. Lomame tinha chegado de Busira com Bakanja e me recebeu como empregado ao passar porvBompembe.v(…)
– Você nunca ouviu dizer que Bakanja tivesse roubado vinhovde Longange?
– Não. Nunca ouvi dizer isso. Tal roubo eu desconheçovtotalmente!
– No entanto, não foi por causa de um roubo que Longange bateu em Bakanja?!
– É impossível! Se Bakanja tivesse roubado, todo mundovteria ficado sabendo! (…)
– Ter-se-ia Bakanja aproximado de uma das concubinas deve Longange?
– De maneira nenhuma! Nunca ouvi dizer que Isidoro tenha tocado em alguma mulher!
(…)
– Será que Bakanja foi impertinente com Longange?
– Menos ainda!… Isidoro era bom trabalhador!… Falava pouco e nunca teria tido a coragem de protestar contra as ordens do branco!
Em Ikili, Bakanja continuou servindo respeitosamente a seu branco. Condivide com Bomanjoli o trabalho. Quando se apresenta uma boa ocasião, aos que o desejam ele ensina a fazer oração ao Deus-Pai dos cristãos. O seu patrão Lomame disse-lhe um dia: “Se você quer rezar, faça dentro do seu coração, mas sem ninguém daqui ver você!” Esta observação ficou por aí e Bakanja pôde entregar-se à oração e de modo especial à recitação do seu terço, que sempre carregava no bolso.
Mas com Longange aconteceu diferente: desde que chegou a casa dele, Bakanja tornou-se objeto dos seus sarcasmos e troças, dele, o gerente-responsável. Bakanja se queixa disto com Yongo, empregado de Van Cauter (Longange):
– Longange tem ódio de mim, porque sou cristão. Uma vez, quando tirei o meu terço na estrada sossegada da plantação de laranjas, o seu branco me viu e me disse: ” Não quero ver aqui esta coisa aí; guarda isto na sua «sanduku» (sacola). Estamos aqui para trabalhar e não para rosnar rezas. Detesto os homens de «monpère». Não são gente; são bichos!”
Com paciência Bakanja vai agüentando os caprichos e cóleras de Longange. A paciência, contudo, tem limites. Um dia Bakanja sente uma vontade enorme de ir procurar a paz da sua aldeia, junto aos seus. Sonha como seria bom ficar remando sobre as águas do rio, jogar a tarrafa ou o anzol, levantar das águas redes de mão cheias de peixes e ouvir as risadas alegres dos meninos, que na beira do rio aguardam a chegada do pescador. Como seria gostoso desfiar as suas ave-marias ao ritmo das palmeiras que ciciam ao sopro da brisa da estação da seca, ao ritmo da chuva a martelar sobre as palhas das choupanas, onde grandes e pequenos se acotovelam em roda do fogo…
Pensando assim, Bakanja se dirige para a casa do seu patrão e lhe diz:
– Branco, me dê a dispensa do meu trabalho!…
– Não darei a você nenhuma “monkanda” (documento de dispensa). Você é gentinha do Bom-Deus, vá procurar com Ele a sua dispensa! Por mim não vou dar nada a você.
Mas a Lomame Longange dizia: «Faça desaparecer este “boy”!»
As semanas vão passando. No fim de janeiro de 1909, Bakanja e Yongo acompanham os patrões a Bonjoli, onde Longange intervém para ajudar o chefe ordinário de Ikili a vingar-se do assassínio de Loanga, uma das suas mulheres.
Será em Bonjoli, junto aos Nkengo, que os acontecimentos irão precipitar-se e, para Bakanja, tomar um rumo trágico.
Ao cair da noite, Iyongo, Bakanja e o cozinheiro Mputu se entregam às suas tarefas habituais: arrumar as camas dos brancos e os mosquiteiros, fechar as janelas, tirar a água e esquentá-la para o banho, cozinhar e servir o jantar. Enquanto estão servindo à mesa, Longange nota o escapulário no pescoço de Isidoro e lhe diz: «Bakanja, tira este negócio do pescoço… Que coisa repugnante! Não quero mais ver aqui esta joça de “monpère”!»
Bakanja volta em silêncio para a cozinha e conta aos amigos o incidente, que neste dia não teve prosseguimento. Rezando e com o seu escapulário no pescoço, Bakanja adormece.
CAPÍTULO V: “Se o deixarmos continuar assim, todos vão acreditar nele” (Jo 11,48)
A cólera de Longange vinha do fato que Bakanja se recusava a tirar o escapulário. Trazê-lo era um direito dele: ninguém, nem mesmo o seu branco, poderia proibi-lo de obedecer à voz da sua consciência. O que diz o patrão enraivecido demonstra a coragem e a dignidade de Bakanja:
“Que quer dizer isso? – grita Longange – Como? Eu já não tinha falado para arrancar este troço? Por que não me obedeceu? Já que não quer arrancá-lo, espere! Vai ver com quantos paus se faz uma canoa!”
Era o dia 1º de fevereiro pela manhã, sempre na feitoria de Ikili, lá onde Longange imperava como dono, despótico e violento. Na hora da refeição da manhã, Longange nota mais uma vez o cordão do escapulário saindo por fora da camisa entreaberta de Bakanja. Longange se agasta e manda dar 25 chicotadas no pobre do Bakanja. Com humilde submissão Bakanja aguenta o castigo injusto: pensa que as chicotadas pouco importam, mas arrancar o seu escapulário seria diferente. Está cada vez mais resolvido a não separar-se dele de maneira nenhuma. Tanto pior se batem nele.
O silêncio de Bakanja exaspera Longange, que fala alto consigo mesmo: «Não resta nada a fazer com estes cachorros de cristãos: solapam a autoridade dos brancos. Fique este fulano aqui mais tempo e todo o mundo, “boys” e trabalhadores, quem sabe mesmo os moradores da aldeia, todos vão começar a rezar!» Por esta reflexão cheia de ódio adivinha-se como era sectário o gerente da feitoria de Ikili. Não era por nada que deixavam os missionários de cooperar com boa vontade com certos compatriotas seus. Boyoto estava perfeitamente com toda a razão ao prevenir Bakanja contra a mentalidade de certos brancos das matas. Parece que se tornam agora realidade os seus vaticínios pessimistas.
* * *
Vamos parar um pouco, antes de continuarmos com a nossa narrativa. As testemunhas ouvidas por ocasião dos numerosos interrogatórios conduzidos judiciosamente pelo Pe. Luís de Witte ainda eram todas não-cristãs, quando se deram os acontecimentos. Ainda não tinham tido oportunidade de se encontrarem com um missionário, visto que a Missão mais próxima se encontrava em Bamanya, a cerca de 400 km de Ikili. Todas elas, ao ouvirem ou contarem as palavras cheias de ódio de Longange, constantemente se perguntavam: “Que quer ele dizer com este «monpère» ?
* * *
Na plantação corre o boato que Longange mandou dar as chicotadas em Bakanja porque na véspera, à tarde, Bakanja teria derramado vinho na toalha. Mas Nyongo nega esta versão:
“Deste vinho derramado não sei nada! Ora estou em boa situação para saber o que Bakanja fazia, pois trabalhamos juntos na cozinha!”.
No julgamento M. Van Cauter pretende ter, só uma vez, dado 17 chicotadas em Bakanja, porque teria cometido dois roubos: um contra a sua pessoa e outro contra o seu branco. As testemunhas desta primeira flagelação afirmam, todavia, que Longange nunca tinha dito abertamente que castigava Bakanja por causa de alguma falta de cuidado ou de algum furto. “Além disto”, – acrescentam – “nem galo nem galinha cacarejaram: «Ladrão!», enquanto Bakanja era espancado!”.
Como o confirma Iyongo na sua sabedoria de camponês Mongo, se Bakanja não fosse cristão, não teria acontecido nada do que se passou. Foi então o simples fato de ver um cristão como criado de um agente da SAB que atiçou a fúria de Longange e o levou a martirizar Bakanja.
Ouçamos a reflexão cheia de simplicidade de Iyongo, que o Pe. Luís consignou no dossiê de 3 de outubro de 1913:
“Muitas vezes ouvi Longange vociferando: «Não quero aqui ninguém de Mon Père! Se enxergar aqui um homem de Mon Père, eu o mato!» E a mim mesmo ele disse: «Se você for um dia até Mon Père, eu matarei você, cortarei a sua cabeça!» Naquele tempo eu não sabia o que era religião e ignorava tudo a respeito de oração e de Mon Père. E por isso perguntei a Longange: «Longange, que é Mon Père? Será que vocês não têm Mon Père na Europa?» E ele respondeu: «Não. Lá onde moramos, nós não o conhecemos! É alguma coisa dos tempos antigos! Na Europa conseguimos fazê-lo sumir!» Mas dizia eu a mim mesmo: «Se Mon Père é qualquer coisa dos tempos antigos e alguém que não presta, porque então BULAMATARI não o mata e não o deixa vir para cá?…» Eu não acreditava no que Longange dizia, não aceitava que Mon Père fosse um «zero» (o mpampa), como pretendia Longange”.
Assim também, quanto às outras testemunhas.
O cozinheiro Mputu, interrogado por sua vez, faz salientar a ignorância das testemunhas não-cristãs (sobre religião): (…)
“Só Isidoro era cristão em Ikili, mas nós naquela ocasião ainda não sabíamos o que era um cristão. Longange xingava sempre Isidoro de «animal de Mon Père». Nós não sabíamos que coisa era «Mon Père» nem nunca tínhamos ouvido falar a seu respeito.
Quando Isidoro foi espancado, a gente pensava que a raiva de Longange tinha sido provocada por aquele toquinho de pano , que Isidoro carregava sempre em volta do pescoço. Mas «rezar», «ser cristão», «Mon Père» eram para nós coisas desconhecidas naquelas horas”.
Aos olhos de todos esses não-cristãos Bakanja aparece como um homem digno, correto, de caráter suave, mas forte nas suas convicções. A sua fidelidade indestrutível às promessas do seu Batismo e à sua Profissão de Fé alimenta-se com a oração e a recitação do terço. Concretiza-se também no fato de trazer o Escapulário. Não! Na verdade, a preço nenhum, nem mesmo ao preço do sofrimento ou da morte, Bakanja se separaria dele!…
CAPÍTULO VI: “Vão prender-vos, perseguir-vos, jogar-vos na prisão (…). Para vós será a oportunidade para dardes testemunho a meu respeito” (Lc 21, 12-13).
Mais do que a vida vale a liberdade de um homem. A narração do martírio de Bakanja bem demonstra que ele foi açoitado por causa da sua fé e que preferiu morrer a renunciar à sua profunda convicção.
Extrato do interrogatório de Iseboya, guarda costas armado de Longange
– Vamos! Deite-se para receber as chicotadas, manda Longange a Bakanja.
– Quê! branco? Não roubei nada na sua casa, nunca me aproximei de sua mulher. Por que você me quer bater?
– Cale a boca, animal de Mon Père, responde Longange. Estou açoitando você, porque você anda ensinando as orações de Mon Père com todas as suas bobagens aos meus trabalhadores, aos meus “boys” e até mesmo aos aldeães; se isto não terminar, ninguém mais ainda vai querer trabalhar para mim, por causa das histórias de Mon Père!
Longange então me deu a ordem:
– Iseboya, dê-lhe umas chicotadas!
Mas eu respondi:
– Não posso: tenho problemas no braço! Ele então me disse:
– Vá procurar Bongele!
Na varanda, bem protegidos contra o sol do meio-dia, Van Cauter (Longange), Reynders (Lomame) e Giret (Mabelu ou Mobilo) estão terminando de trocar entre si as últimas notícias, bebericando o seu copo de uísque. Na cozinha os criados trabalham ativamente. Bakanja já serviu à mesa e os seus companheiros lavam a louça. Para eles também o calor é pesado e têm pressa de folgar.
Bakanja ama estes momentos de tranquilidade, para estar a sós com o seu Deus e com Maria, sua Mãe. Vai, segundo o seu costume, caminhando pela estrada pouco frequentada da plantação de laranjas. E reza: “Pai Nosso… seja feita a vossa vontade… perdoai-me, assim como eu perdoo os que me têm ofendido… Meu Deus, ajudai-me a entender os brancos daqui! Porque eles me impedem de rezar? Será que têm medo do Senhor? Santa Maria, rogai por nós agora e na hora da nossa morte…” As ave-marias vão desfilando bem devagarzinho.
A esta hora, pesados por causa da sesta, os olhos de Longange divisam Bakanja e se reaviva a cena da véspera. Este negro seria mais forte do que ele, Longange, o chefe da plantação? Que é que está fazendo sozinho na estrada? Será para lhe fazer pirraça? A não ser que esteja indo para o porto a fim de denunciá-lo ao Sr. Grillet, o Inspetor comercial da SAB, esperado de um momento para o outro. Não há dúvida de que o Inspetor ficará sabendo do que aconteceu ontem!
Longange chama o seu guarda-costas Iseboya, que sai para procurar Bakanja, que retorna e respeitosamente se apresenta:
– O Sr. me chamou, branco. Estou aqui!
Na presença dos outros brancos, Longange escarra mais uma vez o seu ódio contra os cristãos e tudo o que diz respeito à religião. Impassíveis, os seus companheiros escutam. Conhecem Van Cauter (Longange) e, como os Negros, têm medo dele. Bakanja, porém, se cala. É grande e nobre, homem fiel às próprias convicções. Pela Fé está pronto para todos os sacrifícios, sem preocupar-se com a própria pessoa.
Debaixo do telhado da varanda está secando um chicote novo. É uma correia tirada da pele de um elefante. Como, ao cortá-la, ela se rasgasse, Longange emendou-a enfiando na extremidade dois pregos, cujas pontas apareciam de fora. É a hora de usá-la, pensa ele. Vai tirar deste cachorro de cristão toda a vontade de ficar rezando!
E entregou o terrível chicote a Bongele, seu guarda-costas:
– Avance contra este sujeito!
Bongele se nega:
– Bater com um chicote destes e por quê?
– O problema é meu, esbraveja Longange. Não quero em minha casa ninguém de Mon Père!
E grita para Isidoro se deitar. Isidoro sente-se forte na sua inocência e fica impassível. Longange, então, aproxima-se como um demônio, sem preocupar-se com os curiosos que acorrem para perto do palco do drama. Lança-se contra Bakanja e, indican-do o escapulário, lhe diz:
– Que quer dizer isto aí? Que é que eu tinha falado com você? Arranque isto do seu pescoço já!
Isidoro continua sempre impassível. Longange então arranca o escapulário com violência e o joga para o seu cachorro, que sai pelo campo ali perto, estraçalhando o escapulário. Agarrando depois Bakanja pela nuca, joga-o no chão e manda os seus dois guarda costas, Iseboya e Bongele, segurá-lo pelos braços e pelas pernas. Repete a Bongele a ordem de açoitar o pobre Bakanja, mas Bongele se nega:
– Eu me recuso a bater com este chicote armado de pregos.
A hesitação do seu guarda costas deixa Longange exasperado:
– Não invente histórias; quem manda aqui sou eu. É um assunto totalmente meu. Agora! Já!
Começa então para Bakanja um calvário prolongado que o levará até à morte e até à glória.
Com o desejo de ajudar Bakanja, Bongele segura o chicote pela parte que tem os pregos e começa a bater com a outra ponta. Longange percebe logo o subterfúgio e exige que Bongele vire o chicote e bata nas costas da sua vítima com a ponta que tem os pregos. O guarda costas, realmente, tem dó do seu irmão de raça e bate com moderação.
– Não é assim, urra Longange; bata com mais força! E vai para casa buscar o fuzil.
– Se você não bater com mais força, eu mato os dois!
Pura ameaça? De modo nenhum! Longange era capaz de matar mesmo. Amedrontado, Bongele desdobra as suas forças e bate. De início, os pregos não rasgam a pele senão de leve, mas bem depressa vão arrancando lanhos. As carnes das coxas e nádegas do mártir aparecem ao vivo, o sangue esguicha e corre pelo chão, por toda parte. Quando Bakanja se contorce de dor, Longange aperta o pé contra as costas do coitado para que permaneça quieto. Quando Bongele, cansado, diminui o ritmo, Longange chuta a sua vítima com as botas e vocifera: “Não acabou ainda. Bata com mais força!”
A gente diria que a vista do sangue excita Longange mais e mais. Bakanja geme: “Branco, estou morrendo. Tenha dó. Minha mãe, ai! estou morrendo… Ai! meu Deus! Estou morrendo…” Mas o carrasco sanguinário permanece insensível. Bongele vai batendo: 200, 250 golpes. Não é capaz de dizer quantos exatamente, mas o seu braço está sem forças e acaba não querendo continuar.
Desta vez Longange desiste e se cala. O mártir, ajuntando todas as suas forças, tenta levantar-se, mas torna a cair no chão, que está vermelho pelo sangue dele. Bakanja é uma chaga viva. Homens e mulheres, que o rodeiam, choram por ele e o lamentam.
E Bakanja geme: “O branco me matou com um chicote!… Não queria que eu rezasse a Deus… Ele me matou porque eu dizia as minhas orações… Eu não tinha roubado nada na casa dele… Mas é porque eu rezava a Deus…”
Longange dá ordens para prender a sua vítima. A prisão da feitoria não é nada mais que a construção, onde se defuma a borracha. Longange prende depois as pernas de Bakanja com algemas de ferro presas a um peso. Tendo a consciência pouco tranquila, o carrasco tem medo de que o mártir fuja e vá denunciá-lo a um dos seus chefes.
CAPÍTULO VII: “Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; estava nu e me vestistes; estava no cárcere e fostes ver-me” (Mt 25,35-36).
No cárcere, onde muitos outros estão acorrentados, Bakanja, com os tornozelos apertados dentro das algemas de ferro, continua a subir o caminho do Calvário. Ficará aí de dois a quatro dias. Neste meio tempo Mputu e Iyongo, respetivamente cozinheiro e criado de Longange, levam comida para ele, no cárcere, com risco de serem surpreendidos e castigados pelo patrão e, quando é preciso, ajudam Bakanja a se deslocar, pois não está em condições de caminhar sozinho.
O suplício de Bakanja torna-se assunto de todas as conversas. Todos estão abalados com a maneira como o branco bateu no empregado do seu auxiliar. E por que o auxiliar não interveio? Bakanja mesmo dirá mais tarde que o seu patrão não estava em condições de resistir a Longange nem tinha coragem de lhe censurar qualquer coisa. Longange era o terror da feitoria. As pessoas o apelidavam muitas vezes de “Esomb’a nkoli”, isto é, “o espancador”, pois trazia sempre consigo cipós para vergastar as costas dos trabalhadores; tinha também o apelido de “lopoi” , pois eram terríveis os seus acessos de raiva.
Numa esteira estragada, toda suja de sangue e fezes, Bakanja luta contra a febre, que o assalta e esgota. Junto dele, uma cabaça e uma tigela de arroz, mas Bakanja não toca nem um pouco na comida que, cheios de dó, os seus amigos Mputu e Iyongo acabam de trazer-lhe, sem os brancos ficarem sabendo. Bakanja não tem força nem para levar até a boca em fogo a cabaça de água fresca. Violentos acessos de tosse devidos ao cheiro acre de fumaça, que impregna a prisão, abrem cada vez mais as suas chagas dolorosas.
Na meia escuridão uma ratazana salta sobre a coberta esfiapada. Nas paredes aranhas enormes, as tarântulas, perseguem as baratas. Mosquitos aferroam, e as mãos cansadas do mártir mal se defendem contra as suas picadas. Com dificuldade encontra no bolso a cruz do seu terço, que segura firme enquanto os lábios murmuram: “Meu Deus, que é que o Senhor quer de mim? Que mal eu fiz?” Um suor frio escorre por todos os seus poros: “Meu Deus, não me abandone! Não roubei nada. O branco não estava querendo eram as minhas orações!…”
Neste meio tempo corre o rumor de que a qualquer momento vai chegar o Inspetor da SAB. E Longange sente-se em má situação. Está preocupado. Não gostaria que esta história de Bakanja chegasse aos ouvidos do Sr. Grillet! Com efeito existe uma lei trabalhista na colônia. Foi por isso que os brancos combinaram e decidiram mandar Lomame de viagem a Isoko: Bakanja o acompanhará e não terá assim oportunidade de fazer queixas a Grillet. Longange, então, corre precipitado até a prisão, solta as algemas da sua vítima aturdida e lhe ordena de ir até Isoko com o seu patrão Lomame.
– Branco, objeta Bakanja, o Sr. está vendo bem que não tenho mais condições de caminhar.
– Nada de histórias! responde Longange. Parta junto com o seu branco!
Bakanja tem medo de novo espetáculo de violência e se levanta no meio de muito sofrimento; sai dobrado em dois por causa da dor. O seu carrasco dizia a si mesmo que Bakanja nunca chegaria a Isoko, que haveria de morrer no meio da mata e assim todo este assunto ficaria abafado.
Bakanja sofre muito e vai seguindo a seu patrão rumo a Isoko, mas logo que está longe da vista dos outros, entra no meio do mato e se esconde nas proximidades do brejo perto da estrada, que leva ao porto de Yele. Na friagem da noite, que vem caindo, Bakanja treme de frio e febre e diz a si mesmo: “Oh! quem me dera passasse alguém por aqui para avisar os meus amigos!…” E eis que, justamente, alguém se aproxima. É o guarda das cabras de Longange, Lokwa, que está voltando para o campo.
– Lokwa, Lokwa! – chama Bakanja.
– Você aqui? pergunta Lokwa.
– Pede a Mputu para me trazer a minha roupa, fogo e um pouco de comida.
Lokwa vai avisar Mputu em segredo e Mputu sai correndo para junto de Bakanja para livrá-lo do frio, da fome e das feras. Em Isoko, Reynders (Lomame) espera em vão pelo empregado e manda um mensageiro prevenir Longange, que fica agitado, vai dando ordens, suspeitando de que Iyongo e Mputu estão escondendo Bakanja.
– Vão procurar Bakanja! Quando descobrirem onde está escondido voltem para me avisar! Entenderam?
– Entendemos bem!
– Mas, por outro lado… Não foram vocês mesmos que o esconderam? – grita Longange – Se o encontrar, vou matá-lo! Hei de encontrá-lo, nem que seja para pôr toda a aldeia à procura dele!
Mas chegou um barco. Longange é obrigado a parar com as suas investigações.
CAPÍTULO VIII: “Tudo o que está escondido será descoberto; tudo o que está em segredo será revelado” (Mt 10,26)
Na beira do rio, Longange pensa estar acolhendo o seu amigo Grillet, mas se encontra diante de outro Inspetor, Dörpinghaus, por outro nome: Potama, e convida o viajante a participar do seu almoço do meio dia.
Como todo o mundo, Iyongo, criado de Longange, está à beira do rio e assiste à atracação do barco. A chegada de um barco é sempre uma festa. Os meninos correm daqui e dali e admiram os mais velhos que viajam assim semanas e semanas. As mulheres aparecem de todos os lados com balaios cheios de raízes de mandioca e de batata doce, de “chikwángues” e bananas. Com a presença delas instala-se um mercado… Os homens se movimentam junto às pilhas de lenha. De repente um olhar imperioso de Longange arranca Iyongo para longe deste espetáculo fascinante e ele sai correndo até Ikili, a fim de preparar o almoço para o branco e seu convidado.
À altura do brejo, Bakanja o surpreende. Como os outros, Isidoro tinha ouvido o apito do barco e pede informação:
– Foi Bongende (Grillet) quem chegou?
– Não. Não foi Bongende, mas Potama (Dörpinghaus), responde Iyongo. Mas como é que você não está em Isoko?
– Como poderia chegar a Isoko se não posso caminhar?
Longange mandou-me para lá para eu morrer na estrada e isto eu não quero. Vim para cá. O mato me protege. Só Deus sabe se vou morrer das minhas feridas ou viver.
Mas ouvindo o pessoal que vinha pela estrada, Iyongo suplica a Bakanja para se esconder: “Cuidado, Bakanja! Olhe Longange e Potama. Quando Potama daqui a pouco voltar para o barco, você se apresente, mas agora não !”
Depois do almoço, Potama despede-se de Longange, pois não pode demorar-se: precisa prosseguir viagem. Lwanga, o guarda de cabras, vem atrás dele, carregando nos ombros dois quartos de uma cabra, uma oferta do patrão ao seu hóspede.
Percebendo que vêm vindo, Bakanja os interpela… Eis como Dörpinghaus conta o incidente:
“Vi sair da mata um homem com as costas rasgadas de chagas profundas, que supuravam e tinham mau cheiro; o homem estava coberto de imundície, maltratado pelas moscas, apoiando-se em dois pedaços de pau para chegar perto de mim, arrastando-se mais do que andando. Interrogo o infeliz e lhe pergunto: «Que foi que você fez para merecer um castigo destes?» Ele me respondeu que, por ser cristão da Missão Católica dos Trapistas de Bamanya, tinha querido converter os trabalhadores da feitoria: era esta a razão porque o branco mandou açoitá-lo com um chicote duro, que tinha pregos pontudos”.
Potama dá ordens a Lokwa para ir chamar Longange. Furioso, Longange chama o seu guarda costas Iseboya, que justamente está voltando da caça com o seu “Albini” e lhe diz:
– Iseboya, traga Bakanja aqui o mais depressa possível. Se não quiser vir, mate-o!
Vendo Iseboya com o fuzil, Potama compreende as intenções de Longange e barra a passagem do guarda costas, dizendo-lhe:
– Onde você vai com este «Albini»? Acha que aquele homem ali é um bicho?
– Estou indo caçar um javali! responde Iseboya.
– É mesmo?!… exclama Potama. Então é um javali? Não é mais um homem?
– Não vou matá-lo! responde Iseboya. Meu branco mandou-me levá-lo!
Neste entretempo chega Longange. Quer dar um tapa no rosto de Bakanja, mas Potama agarra o seu braço. Longange vomita então acusações contra a sua vítima: “Você está contando assim a um outro branco as coisas que eu faço?… Aqui em Ikili o único patrão sou eu!”
Uma longa discussão estoura entre os dois brancos. Que é que eles dizem um ao outro? Ninguém nunca o saberá, pois nenhuma das testemunhas compreende o francês.
Por fim Potama manda os dois homens carregar Bakanja até o barco, que está de viagem para Isongu, onde Grillet o aguardava. É evidente que o comportamento desumano de Longange não é de modo nenhum apreciado pela Direção Geral da SAB. No decorrer do mês Longange arruma as malas e tem de abandonar não já a feitoria de Ikili, mas o seu posto na Sociedade. Uma carta do Sr. Stronck dá testemunho disto:
“No princípio de fevereiro de 1909, eu estava na plantação de Botako e fui chamado a Ngomb’Isongu, no rio Lomela, para ir substituir o Sr. Van Cauter (Longange) em Ikili. Por intermédio do Sr. Grillet, Inspetor Comercial, e do Sr. Dörpinghaus, Inspetor das Plantações, fiquei sabendo que o Sr. Van Cauter devia abandonar o serviço da nossa Sociedade para se pôr à disposição da justiça: tinha infligido um castigo brutal a um trabalhador da sua feitoria sem motivos sérios, mas sobretudo, como o Sr. Dörpinghaus o confirmou para mim, para dar vazão ao seu ódio infernal contra a religião católica, da qual o mencionado Bakanja era fervoroso propagador no meio dos trabalhadores, desejoso de colocá-los a par das primeiras noções necessárias para receberem o batismo”.
CAPÍTULO IX: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo não cair por terra e não morrer, há de ficar sozinho” (Jo 12,24)
Bakanja não guarda ódio no coração. Ao Pe. Jorge, que esteve à sua cabeceira, promete rezar pelo branco, que tão cruelmente o maltratara. “Não estou aborrecido com o branco. Ele me bateu: é problema dele e não meu!” (…) “Sim! Se eu morrer, rezarei muito por ele no Céu!…”
No barco do seu salvador Bakanja está longe de estar abandonado. Potama limpa as suas chagas e procura curá-las o melhor possível, mas é grave o estado de Isidoro. As suas carnes todas estão a descoberto e se infeccionam; vêem-se os seus ossos.
No dia 9 de março o barco aporta a Ngomb’Isongu. O inspetor Potama põe debaixo dos olhos de Grillet a vítima de Longange. Grillet deve agir: não pode deixar passar em silêncio o incidente sangrento de Ikili.
Bakanja é entregue aos cuidados do chefe Isengakoi. Cada dia Ntangeji, o criadinho do chefe, vai buscar na casa do Sr. Bertrix a porção de peixe, mandioca e arroz, que Bakanja precisa. Outro adolescente, Ngolumbu, cozinha para ele os alimentos, dá-lhe banho e fica com ele durante a noite. Outro branco, o Sr. Dufourd, chefe dos agrimensores do Bush-Bloc, prodigaliza-lhe os seus cuidados, procurando drenar a infecção, que parece ganhar terreno cada dia mais.
Todas as pessoas, que se encontram com Bakanja na casa do chefe, ficam conhecendo a triste história, todos ficam sabendo que ele é cristão e o veem rezar incansavelmente. Aqui também a religião católica é a grande desconhecida. E o povo então se interroga: “Que é, então, que dá a Bakanja força para suportar o seu mal? Quem é este Deus que ele invoca com tanto fervor e perseverança?” E os seus corações já se apresentam como um campo fértil, onde os sofrimentos de Bakanja lançam a semente… Com efeito, um ano mais tarde, o catequista aqui nesta região, Bakombo José, que foi testemunha do martírio de Bakanja, encontrará um povo disposto para receber a Boa-Nova de Jesus Cristo.
No início de junho, o Sr. Dufourd, vendo que o estado do ferido só piorava, embarca Bakanja no “Brughman”, que a 4 de junho chega a Busira, onde mora Boya, primo de Bakanja e que era marceneiro da SAB. Este lhe dá hospedagem em casa. Mas por que depois o primo o envia para casa de um aldeão chamado Bontamba? Está amedrontado com os cuidados que deve prestar a Isidoro? Não tem ele uma pessoa para cuidar de Bakanja, enquanto ele vai para o trabalho?
O catequista Antônio Loleka não concorda com esta decisão. Quem está sofrendo vê multiplicados por dez os seus sofrimentos, ao sentir-se rejeitado pelos seus. Loleka então faz Boya perceber que está faltando à tradição, ao distanciar Bakanja desta maneira, e que não pode, a preço nenhum, deixá-lo morrer em casa de estranhos. Juntos, Boya e Loleka vão buscar Bakanja e desta vez o entregam aos cuidados de uma senhora de nome Bolangi, que mora numa casa em frente à de Loleka.
É aí que nos dias 24 e 25 de julho Bakanja tem a alegria de ser visitado por dois missionários, os padres Gregório Kaptein e Jorge Bubrulle, em giro pastoral pela parte mais distante da sua circunscrição. Bakanja pode, enfim, fazer a confissão, receber a Unção dos Enfermos e, sobretudo, acolher no seu coração Aquele que, como ele, foi flagelado na própria carne.
Ao conversar com os padres, Bakanja mais uma vez afirma a causa do seu martírio. O Pe. Jorge, que esteve à cabeceira do doente, pergunta-lhe:
– Isidoro, por que o branco bateu em você?
– O branco não gostava dos cristãos!… Não queria que eu trouxesse o hábito de Maria !… Gritava comigo quando eu rezava as minhas orações!…
E quando o Pe. Jorge fala com ele sobre os seus sofrimentos e tenta reconfortá-lo, Bakanja renova o seu “fiat”, isto é, a sua plena adesão à vontade de Deus:
” Se eu morrer não é nada! Se Deus quiser que eu viva, viverei. Se Deus quiser que eu morra, morrerei. Para mim é igual !”
O Pe. Jorge ainda deseja aconselhar Bakanja a não alimentar ódio no seu coração, a perdoar o branco que o maltratou com tanta crueldade, até mesmo a rezar por ele, a pagar o mal com o bem; e Isidoro lhe responde: “Não estou com raiva do branco… Ele bateu em mim: é problema dele, não é mais o meu!”
Isidoro, portanto, não exige nenhum recurso à justiça, nenhuma reparação, nenhuma indenização. E quando lhe diz o Pe. Jorge que, ao chegar ao Céu, deverá rezar pelo seu carrasco, Bakanja responde: “Sim! Se eu morrer, rezarei por ele no Céu”.
CAPÍTULO X: Quem quiser vir após mim renuncie a si mesmo, carregue a sua cruz e siga-me. Porque quem quer salvar a sua vida vai perdê-la; quem perder, porém, a sua vida por causa de mim há de reencontrá-la” (Mt 16,24-25).
Não foi lançando pétalas de rosas que se falou assim! Renunciar a si mesmo, carregar a sua cruz, perder a sua vida não são palavras ocas para Jesus, a quem os inimigos conduziram ao suplício da cruz como cordeiro ao matadouro.
Não foram palavras ocas para os primeiros mártires cristãos, que entregaram o próprio corpo às torturas dos seus algozes.
Não foram palavras ocas para Bakanja, que está sofrendo sempre mais na sua carne putrefeita e nos seus ossos postos a nu! Esta pobre vida da terra ele está perdendo cada dia um pouco mais… Perde-a nesta manhã de 15 de agosto de 1909 devido a todo este sangue, que acaba de vomitar mais uma vez.
Apesar disto conseguiu unir a sua oração à dos cristãos e catecúmenos, que vieram especialmente para rezar a Maria na varanda do catequista Loleka, que há algumas semanas o hospeda. Bakanja sente-se feliz ao ver a Palavra de Deus brotar e crescer dentro do coração dos seus irmãos de cor.
Diante da admiração de todos os que já o consideram moribundo, Bakanja levanta-se, desce a varanda e, com o terço nos dedos, por um momento caminha em silêncio no meio do bananeiral; em seguida – ele que a gente sempre via como que distanciado – torna a subir os degraus e volta para a cama, para, enfim, aí encontrar o repouso eterno.
Assim, sem ruído, na simplicidade com que sempre viveu, Bakanja Isidoro acaba de partir ao encontro d’Aquele que o havia chamado há três anos apenas. Aquele que o havia enviado como ovelha para o meio dos lobos. Aquele a quem ele havia seguido e servido com incansável fidelidade.
Entregue a si mesmo o homem é incapaz de perder a vida serenamente, incapaz de ver na morte uma libertação, um novo nascimento. Na oração e na fidelidade Bakanja descobriu o sentido da vida e o sentido da morte. Que pode acontecer diferente do que aconteceu com o seu Mestre, Cristo Jesus, que depois da sua Paixão e Morte ressuscitou e hoje tem parte na glória do Pai?
Bakanja não está mais aqui. O dia inteiro, a noite inteira, o tantã africano ressoa. Cristãos, catecúmenos e até mesmo não-cristãos se lamentam, choram, cantam, rezam, fazem vigília. No meio deles Bakanja está descansando, com o terço entrelaçado nas mãos postas e o escapulário no pescoço. E foi assim que os seus amigos o sepultaram no cemitério de Wenga, à beira da plantação.
Quando os padres estabeleceram mais tarde o posto de Bokote, não deixaram de levar consigo o corpo de Bakanja, cujo local de sepultamento os cristãos sabiam exatamente, e cheios de veneração o enterraram no cemitério da Missão. É ali que ele repousa até os dias de hoje, aguardando a Ressurreição.
BAKANJA NOSSO MÁRTIR. Estas três palavras resumem a vida meritória e exemplar deste empregado simples, que Deus escolheu para si, para que se tornasse “semente” de cristãos na terra nossa do Zaire. Possa a Igreja reconhecer a excepcional influência, que Bakanja Isidoro exerceu na sua terra, martirizado unicamente porque se dizia e se mostrava cristão.