O carisma carmelitano
Uma árvore plantada junto à fonte da Palavra de Deus
Frei Antônio Farias de Freitas, O. Carm.
O tempo é testemunha de que tudo que é bem plantado e cultivado cresce e floresce dando fruto no tempo oportuno. Assim pode ser definido o carisma de uma Ordem religiosa como o Carmelo. No transcurso da história, na mudança da geografia, na diversidade de línguas, podemos constatar que o carisma carmelitano, se assemelha ao grão de mostarda com o qual Nosso Senhor compara o Reino de Deus.
A palavra “charis” ou graça deu origem ao termo carisma. Isso significa que é um dom gratuito dado por Deus a um grupo ou pessoa para edificação do Corpo de Cristo, que é a Igreja. Assim, quando falamos de carisma Carmelitano, queremos dizer: “Viver em obséquio de Jesus Cristo e servi-Lo fielmente de coração puro e boa consciência”: esta frase de inspiração paulina é a matriz de todas as componentes do nosso carisma e a base sobre a qual Alberto construiu o nosso projeto de vida. O peculiar contexto palestinense das origens e a aprovação da Ordem na sua evolução histórica por parte da Sé Apostólica enriqueceram com novas matizes inspiradoras à fórmula de vida da Regra. Os Carmelitas vivem em obséquio de Jesus Cristo numa atitude contemplativa exercitada numa vida de oração, de fraternidade e de serviço no meio do povo.
Os primeiros Carmelitas são peregrinos, homens inconformados com um modelo de viver a fé que, movidos pelo desejo de seguir a Jesus de forma mais radical, buscam na Terra Santa, o Santo da Terra. Constroem o novo, aventuram-se para garantir a autenticidade de sua fé. O Carmelita é por natureza um inquieto, peregrino, inconformado com a mesmice da fé e da história, aventureiro do Absoluto. Identificar o Carmelita como peregrino é fundamental para compreendermos que se trata de alguém que está sempre diante da difícil tarefa de escolher entre uma e outra realidade.
Quando nos aproximamos do salmo 1, do qual o legislador da ordem extraiu a indicação de que o Carmelita deve manter-se sempre junto à fonte “meditando dia e noite na Lei do Senhor”; tanto o salmista, como o legislador da Ordem, indicam de forma parenética, isto é, exortativa, para o fato de que há uma lugar do qual nunca devemos nos afastar, ou seja, a fonte que é a Palavra de Deus; embora, como peregrinos, estejamos diante de dois caminhos possíveis, e a escolha de um ou de outro, comprometerá toda a vida que segue. Desse modo, o convite a escolher um dos caminhos é uma realidade que encontramos já bem antes na Escritura: “Eis que ponho diante de ti a vida e a morte” (Dt 30,19). É assim que Deus convida o homem a caminhar pela vida. Tal convite se prolonga de geração em geração, como condição para que a obra de Deus se realize no mundo através daqueles que se dispõem a manter viva a aliança.
O Carmelo um lugar
A Sagrada Escritura está permeada de referências a espaços geográficos onde Deus se revela aos homens. Em Gn 2,8, temos uma primeira referência de lugar criado por Deus e no qual Ele colocou o homem. Tal referência ao jardim no Éden (lugar), situa o leitor num espaço cuja finalidade era a promoção da vida em abundância e a total liberdade do ser criado por Deus e com quem Deus estabeleceu uma relação de proximidade, como atesta Gn 3,8: “Ouviram, então, a voz do Senhor Deus, que percorria o jardim pela brisa da tarde…” Como se pode observar, o jardim era o lugar do encontro entre criatura e criador, lugar do convívio pacífico e harmonioso entre o homem e as feras, lugar no qual Deus e o homem compartilham o ideal de vida plena.
Se, por um lado, o lugar é criado por Deus, que deseja estabelecer com o homem uma relação de proximidade, serve também para implicar o homem numa missão. Em Ex 3,1-5, Deus revela-se e ao mesmo tempo envia Moisés em missão de libertador. Nesse relato, o lugar já possui outra característica, trata-se de um lugar elevado, aspecto que vai caracterizar sempre o lugar das grandes teofanias. Moisés, no local elevado, isto é, no monte, conhece o Deus que se revela pelo nome, sinal de que ele deseja ser conhecido e mais do que isso, quer que o homem saiba que Ele é um Deus que é (ya) próximo.
Do lugar da escravidão (Egito), Deus, por meio de Moisés, conduz o povo hebreu para o lugar da experiência, da purificação, o deserto. O deserto é um marco de transformação na caminhada do povo de Deus, é o lugar onde Deus vai infundindo nos hebreus uma identidade: será conhecido como povo da Aliança. Assim, o deserto é o lugar no qual o povo precisa fortalecer os termos da Aliança, e o mais exigente, a fidelidade; é o local do reconhecimento de Deus como o Deus único, o Deus ciumento, e para isso, é necessário deixar-se guiar por ele, purificar o coração, alimentar a esperança na promessa de que Deus vai levar esse povo a um lugar de fartura (terra onde mana leite e mel).
O deserto certamente não é apenas um local geográfico, mas sobretudo uma experiência do espírito que constantemente precisa recuperar a intimidade com o Deus da Aliança, como nos atesta o profeta Oséias 2,14. O deserto é o lugar do esvaziamento, esvaziamento de tudo aquilo que impede o homem de viver na presença de Deus; o lugar que prepara o coração para acolher tudo aquilo que Deus criou para o homem. Contudo, nem sempre o homem foi sensível a tal experiência, permitindo que seu coração fosse seduzido por deuses estrangeiros. Por isso, Deus sempre enviou seus profetas, seus mensageiros, como faróis que servissem de orientação a todos os peregrinos da fé.
Na tradição carmelitana, nós encontramos um homem e um lugar que nos faz recordar toda experiência do povo da Aliança: Elias e o Carmelo. Depois de uma longa caminhada, o povo já havia esquecido as promessas de Deus, havia esquecido os grandes feitos do passado e se deixou seduzir por Baal. Elias, o tesbita, homem consumido de zelo pelo Senhor dos Exércitos, catalisa a imagem de Moisés. O Carmelo se torna o Monte do encontro e da manifestação daquele que é Senhor da história e cuidador de seu povo. No Carmelo, assim como no Horeb, Deus se dá a conhecer: Ele é o Deus fiel, que escuta os clamores e responde com sua presença.
Ao olhar para o Carmelo, os carmelitas são convidados a purificar no fogo do amor de Deus, todas as suas infidelidades. São chamados a permanecer na presença dele, invocá-lo com toda confiança. Assim é o Carmelo: O lugar da presença amorosa, o lugar da reconstrução da identidade e da vocação carmelitana, o lugar da experiência que abrasa o coração e nos faz redescobrir a grande promessa: “Eu vos introduzi na terra do Carmelo, para que comêsseis dos seus frutos e o melhor dela” (Jr 2,7). Portanto, o Carmelo (jardim de Deus) é imagem do Éden, onde o Senhor vem ao nosso encontro para nos falar como a amigos que Ele ama.
O Carmelo: Um Caminho
A experiência de todo peregrino é marcada pelo caminho, seja ele físico, seja existencial. Assim é o peregrino carmelita, que precisou deixar o lugar de nascimento e partiu para um lugar distante, levando consigo, a semente do carisma que havia sido plantado no Monte Carmelo. Diante dessa nova realidade, os eremitas do Carmelo são chamados a viver o carisma não mais como eremitas, mas como peregrinos – e isso, diante da dinâmica de uma outra língua e de uma reorganização da própria vida. Contudo, para os primeiros cristãos, que são chamados discípulos do Caminho, o peregrinar se faz de dentro para fora.
Tal como os discípulos de Emaús, o peso do sofrimento, o cansaço das lutas diárias, o desânimo, as frustrações, as perseguições e o aparente fracasso dos ideais, ofuscam naquele que caminha, a presença d’Aquele que é o caminho e o caminhante, Jesus Cristo. É justamente neste momento de aridez, quando a tentação de abandonar tudo e regressar para a vida do homem velho (Ef 4,22-24), quando os olhos pesam e o coração esfria, que surge no caminho o terceiro caminhante, e trás consigo o frescor da Palavra que suaviza a fadiga do caminho, mas ao mesmo tempo trás consigo o fogo da Palavra que faz arder o coração, quebrando o gelo que antes havia se instalado.
Segundo Bauer (2000, p.51) o caminho é o comportamento ético do homem, sua maneira de viver. Nesse sentido, são muitos os textos do Antigo Testamento que assim apresenta essa ideia (Ex 18,20; Dt 5,32s; Jr 4,18; Jó 21,31). Esse caminho geralmente é considerado em relação com a vontade de Deus. O “caminho do Senhor” é a maneira como Deus manda o homem viver, de modo que caminho se torna quase sinônimo de mandamento (Jr 7,23; Sl 119,15). Nesse sentido pode ser dito que certas pessoas “andam” pelo caminho de Deus (Jó 23,11; Sl 18,22). Mas ao mesmo tempo, encontramos inúmeros textos em que é dito que alguns não andam pelos caminhos de Deus e seguem seu próprio caminho (Is 56,11).
Para o autor do salmo 119, permanecer no caminho exige do caminhante prece constante pela ajuda de Deus, de modo que no v.109, o salmista exclama: “tua Palavra é lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho”. A mesma indicação de que é necessário a ajuda de Deus aparece em Sl 25,4; 86,11. Sem a graça divina, o peregrino corre o risco de seguir por vias tortuosas, isto é, longe da presença de Deus e, portanto, já não será capaz de manter o vigor da caminhada.
Em estreita comunhão com o AT, Jesus chamou de caminho o conjunto das diretivas práticas que ocupam um lugar importante em sua pregação (cf Mt 22,16). Deus é o objetivo ao qual o caminho conduz (Hb 10,19-22; Jo 14,1-4).
Segundo o evangelista João, Jesus é o caminho (cf Jo 14,6), caminho que leva a Deus não pela observância da Lei, mas ao caminho da fidelidade como discípulo. Assim, com a afirmação de que ele mesmo é o caminho, Jesus apresenta ao discípulo que existem outros caminhos, outras portas; mas aquele que deseja salvar-se precisa decidir-se em favor de Cristo, para o qual somos exortados, e isso exige esforço e perseverança.
Nesse sentido, o Carmelita compreende que o carisma carmelitano é um caminho bom e reto que leva até Deus, embora tenha consciência de que se trata de um caminho de subida no qual é necessário empreender grande esforço, para perseverar até o fim, isto é, chegar ao cume do monte que é Cristo.
Ao largo de mais de oito séculos, os Carmelitas em diferentes lugares, percorrem o mesmo caminho, – e não poucos já alcançaram o cume deste monte –, que já não é mais o Carmelo geográfico da Palestina, mas um modo de viver o chamado à santidade. Daí que ao falar do caminho, compreende-se que é na verdade o empenho de toda a vida no obséquio de Jesus Cristo.
O Carmelo, uma Missão
O número 10 da Regra da Ordem do Carmo assim ordena: “Permaneça cada um em sua cela ou em sua vizinhança, meditando dia e noite na lei do Senhor e velando na oração, a não ser que deva ocupar-se em outros afazeres justificados.” A expressão meditar dia e noite na Lei do Senhor tem sua origem no Salmo 1. Compreendeu-se desde cedo que a vida de um religioso carmelita só pode florescer e dar fruto se este permanece ao redor da fonte de água viva, e essa fonte é a Palavra de Deus (Lei do Senhor).
Para o salmista, Deus apresenta ao homem dois caminhos, e deixa a ele a liberdade de escolher. No entanto, o Senhor também deixa claro ao homem o que cada caminho significa. De um lado, o caminho largo das falsas liberdades, das escolhas mais prazerosas, das correspondências entre aqueles que já não querem abraçar o projeto de Deus e sua justiça. Esse caminho tem sua correspondência simbólica na árvore que tem como destino secar e ser queimada, incapaz de produzir frutos. De outro lado, o caminho estreito, isto é, exigente, das renúncias, da confiança em Deus, da solidão, do abandona das próprias vontades. Esse caminho é simbolizado na árvore plantada junto à nascente, sempre verde, e sempre em condições de produzir frutos.
Desde que os primeiros eremitas se instalaram no monte Carmelo, havia no coração de cada um deles o desejo de viver uma vida diferente, e isso é traduzido na expressão: “in obsequio Iesu Christi”. A partir de um ritmo de vida baseado no trabalho, no silêncio e na partilha dos alimentos, ali se estabelecem, mas sabem que só isso seria incapaz de sustentá-los no propósito. Nasce então o desejo de construir uma capela. Desde então, este lugar é teologicamente compreendido como o centro da vida dos irmãos.
Se por um lado, a capela se torna o lugar de celebrar o culto a Deus e os louvores da Virgem Santíssima, o legislador insiste que seja a cela uma extensão deste lugar sagrado. Pois se na capela a Palavra de Deus é proclamada em público, no Carmelo interior de cada irmão, deve ser meditada no coração e na mente de cada um. Somente assim, esse lugar permanecerá irrigado, pois está sempre recebendo a água nova da fonte.
O verbo permanecer, utilizado pelo legislador, é típico na Sagrada Escritura, sobretudo no Evangelho segundo são João e é o próprio Jesus quem o utiliza, indicando aos discípulos que essa é a vocação à qual todos somos chamados. Aquele que permanece em Jesus, Ele se dispõe a nele fazer morada (Jo 15, 4-17), isto é, passa viver já aqui a vida divina. Como não pensar que essa é realidade que perpassa toda a história do carisma carmelitano? Pois, foi precisamente permanecendo no Senhor (meditando dia e noite), que o carisma carmelitano continua seduzindo homens e mulheres de todas as línguas e culturas, e com eles, produzindo frutos de santidade na Igreja e no mundo.
No percurso do homem chamado a seguir o Senhor mais de perto, já ficou bem definido que esteja ele onde estiver, nunca deve ausentar-se da fonte, e por isso mesmo, deve escolher sempre o caminho que agrada ao Senhor, isto é, o caminho da justiça, da contemplação e da oração. No entanto, ao que abraça o carisma Carmelitano, como resultado de uma vida toda comprometida com a Palavra de Deus, acontece uma abertura devida, a qual chamamos de serviço aos irmãos.
A esta dimensão do Carisma Carmelitano, a Regra, que orienta o Carmelita a permanecer na sua cela ou próximo a ela, acrescenta que a ausência deste lugar de meditação da Lei, pode e deve ser feita quando existem justos afazeres. Segundo as constituições em seu n.21, trata-se do serviço ao povo de Deus. É a missão que busca encontrar o rosto de Deus também no coração do mundo, onde Deus fixou sua morada.
O n.94 esclarece que a missão do Carmelo se insere na missão de Jesus, enviado a proclamar a Boa Nova do Reino de Deus. Consciente de seu patrimônio espiritual, o Carmelita empenhar-se-á na Escuta e pregação da Palavra, consequentemente, nutrindo-se da oração, que vai cimentando os tijolos espirituais que edificam o Carisma Carmelitano. E Santa Teresa de Jesus ensinando suas irmãs afirma: aqueles que se dedicam a conquistar pessoas para Deus não perdem o recolhimento, mesmo entre as canseiras da pregação, ou do ouvir confissões, do reconciliar os inimigos, do assistir os doentes. O mesmo acontece com aqueles que se dedicam ao estudo.
Por fim, é importante considerar que a fonte da qual a árvore se nutre e permanece sempre verde e forte, não se trata de um lugar geográfico, mas de uma experiência de encontro com a Verbo de Deus, a Palavra da Verdade, por meio de quem tudo foi criado e por meio de quem tudo será redimido. Desta fonte se nutre o Carisma Carmelitano, pois cada Carmelita carrega dentro de si, aquela fonte que mesmo escondida as vezes, continua alimentando e renovando o Carisma Carmelitano e todos os tempos e lugares, pois permanece no coração de cada homem e mulher que aceitou viver “In obsequio Iesu Christi”.