DA CELA À CAPELA: EUCARISTIA, ITINERÁRIO DE TRANSFORMAÇÃO
FREI DAVI MARIA, O. CARM.1
Introdução
A vida no Carmelo constitui uma das mais belas aventuras que alguém que se sente vocacionado a seguir, mediante um bom acompanhamento e um apurado discernimento, pode responder com um sim. Essa aventura se dá em grande parte pelos caminhos do coração e por meio de uma vivência e busca interior que deve acontecer diariamente e que, exteriorizada por meio dos atos, mesmo com o passar dos anos e com todo o aprendizado e maturidade que a vida nos traz.
Nessa aventura experimenta-se uma mistura de docilidade e cruz. A cruz se faz necessária para assim fincar a vocação na verdadeira rocha e fazê-la forte. À sombra da cruz nasceram e cresceram a vocação de todos os santos carmelitas, e justamente por olharem para a cruz e nela contemplar a Jesus Cristo é que milhares de homens e mulheres de todos os tempos e lugares, no passado e ainda em nossos dias escolhem a vida e a perseverança no Carmelo, para assim está em contínua comunhão com Deus.
A vida carmelita é um longo itinerário de transformação interior, que só termina com a morte, contudo, esse itinerário de seguimento a Jesus se inicia com o olhar, o Senhor nos olha e nós nos permitimos ser olhados e tocados por Ele. Para aqueles que desejam e se permitem o olhar do Senhor forma e transforma, reproduzindo em nossas vidas as atitudes d’Ele mesmo.
Nesta aventura vocacional que nos faz ressignificar a existência encontramos na Regra do Carmo setas que nos apontam os passos a serem dados e os caminhos que precisam ser tomados, assim como também encontramos lugares que se tornam pascais, ou seja, neles o Senhor se revela de maneira profunda e verdadeira, dentre os lugares que a Regra nos fala encontramos dois que se tornaram nos séculos da Ordem como que pilares de fundamentação da vivência do carisma e da espiritualidade carmelitana, como também lugares fecundos para a práxis dos votos religiosos, que são: a capela e a comunidade.
Assim, a vida é rezada e a oração é vivenciada. Capela e comunidade, se auto complementam, as duas formas uma perfeita harmonia para uma vivência sadia dos valores da vida cristã e carmelita. Ambas não devem ser tidas uma como fuga da outra, antes, meio de uma melhor vivência uma da outra, pois, “sobre a dimensão Litúrgica, desenvolveu-se uma percepção mais comunitária (maturidade), evidenciando a ‘celebração da fraternidade’ como consequência qualificada de uma autêntica vida Litúrgica” (Silva, 2022, p. 43).
Por isso, da cela à capela, da oração ao encontro com os irmãos, acontece um belo itinerário de transformação que, pouco a pouco vai crescendo e se tornando real em nossos claustros, para isso, no entanto é necessário a abertura e docilidade ao Espírito Santo, é Ele quem tudo realiza na vida do Carmelo, deste modo,
O amadurecimento acontece sob a orientação do Espírito, o qual nos configura cada vez mais com Cristo crucificado e ressuscitado e nos une gradualmente ao Pai, convertendo-nos em pedras vivas para a construção do templo de Deus (RIVC, n. 18).
1. A oração como porta para a vida interior
Nos ambientes eclesiais ad intra e ad extra, os carmelitas são conhecidos como homens e mulheres de oração, ou, como disse Bento XVI, em um encontro com o então Prior Geral, naquele ano, frei Fernando Millan, “vós sois o prior daqueles que ensinam a Igreja a rezar”. Tal reconhecimento se dá na vida do Carmelo pelo fato de que aqueles que constituem essa Ordem sempre se dedicaram à vida espiritual, em primeiro lugar, rezando e testemunhando com os atos aquilo que rezavam e, depois, se fosse preciso, transcrevendo, como é o caso de diversos santos e santas do Carmelo.
É bem verdade ainda que em nossos dias, o Carmelo, em muitos lugares continua a despertar muitas vocações, o que nos deixa alegres e esperançosos. Contudo, podemos nos perguntar qual seria o motivo de jovens baterem às nossas portas e pedirem para viver nosso ideal de vida dentro dos claustros carmelitas, quando há outras oportunidades na sociedade de hoje e até mesmo outras famílias religiosas tão fecundas quanto o Carmelo. A resposta da maioria desses jovens que nos procuram talvez se encontre no modo como o Carmelo vive o espírito da oração. Assim sendo, podemos afirmar, sem medo algum, que um carmelita é um homem vocacionado à vida orante, isto é, é alguém escolhido por Deus para estar no mundo e viver sempre em comunhão com Ele por meio da oração.
Por oração, os grandes mestres do Carmelo compreenderam sempre uma estrada de dupla via, ou seja, aquilo que se reza deve ser vivido e o que se vive precisa ser rezado, caso contrário, nossas orações serão apenas fórmulas lidas e nossas vidas estarão distantes daquilo que rezamos. Vida espiritual e testemunho caminham de mãos dadas, tais como se fossem gêmeas.
Este dom de Deus, que é a oração, em parte se dá no Carmelo, pela forma como os carmelitas compreendem e procuram vivê-la. Para o Carmelo, a oração é antes de tudo encontro, relação, intimidade e comunhão com Aquele que sabemos que nos ama, nos relembra a grande mestra de vida espiritual Santa Teresa de Jesus. Este encontro de amor tem lugar no mais profundo do ser de cada pessoa; não é um encontro que acontece fora, apenas, por meio das coisas criadas pelo Senhor, antes acontece dentro de nós mesmos e, mais ainda, é um encontro que não espera que estejamos totalmente plenos.
O encontro com o Senhor constitui uma relação que se dá na generosidade, ou seja, na entrega de um ao outro. Contudo, esta relação de amor acontece em nosso interior muitas vezes nos piores momentos de nossa vida, naqueles momentos em que nos parece que, de fato, o Senhor nos deixou desamparados; justamente aí, deve acontecer nosso encontro com Ele. A oração não é e nem nunca será uma porta ao êxtase, nem aos gozos celestes ou experiências extraordinárias. Isso pode acontecer, mas, antes disso, a oração é uma porta pela qual primeiro nos vem ao encontro o próprio Senhor Jesus e assim podemos ir ao seu encontro.
Os santos carmelitas, de modo especial, Tito Brandsma, no século passado, compreende a oração não como uma alienação, antes, como algo que o centraliza em si, onde Deus habita no mais profundo de seu ser. Assim sendo, a vocação de Tito nasce da vida orante, de sua comunhão com o Pai. Vida orante essa que para ele e segundo o desejo de Deus foi encontrada nos claustros do Carmelo, e que nunca foi algo que o tirou da realidade, antes, o enxertou no mundo para ser sal e luz, como pede o mestre e razão do obséquio no Carmelo: Jesus Cristo.
Pensar a vocação ao Carmelo, é perceber que ainda hoje a graça de Deus se derrama em homens e mulheres de todo o mundo, de todas as culturas, raças, línguas e formas de viver o dom de segui-lo. Por isso, a vocação ao Carmelo é chamada a acontecer na e pela oração, que é sempre diálogo de amor.
2. Da permanência na cela à capela
Diz o capítulo sétimo da Regra dos carmelitas que,
Permaneça cada um na sua cela, ou perto dela, meditando dia e noite na lei do Senhor e vigiando em oração, a não ser que se deva dedicar a outros justificados afazeres (RC,7).
Com esse pequenino capítulo percebemos a importância que a cela exerce na vida de oração para aqueles que desejam permanecer no Monte com Ele. A oração deve ser constante, diz a Regra, dia e noite. Com isso, não diz a Regra que devamos permanecer dia e noite com essa ou aquela prática religiosa, simplesmente diz que devemos meditar na lei do Senhor e vigiar em oração sempre, rezando sempre. Isso porque rezar é muito mais de que ter uma prática religiosa: esta nos ajuda, nos forma espiritualmente nos caminhos da oração; no entanto, não esgota e nem resume a vida orante. Toda e qualquer prática oracional ou devocional são como que placas que nos indicam o caminho a ser seguido; no entanto, não constituem a meta do caminho.
A permanência na cela e vigilância em oração é como um educar a alma, como também o corpo, a procurar aquilo que é essencial, que traz vida à nossa vida. Por muitos anos se insistiu na permanência da cela como meio de combate espiritual, e não está errado; contudo, a cela não é apenas lugar de combate, é também lugar das delicias do espírito, ou seja, lugar por excelência da comunhão com o Senhor, tanto que, encontramos na literatura de alguns santos que, entre a cela e a capela não deve haver nenhuma diferença, pois, na capela está o Senhor eucarístico, presente no sacramento, e na cela este mesmo Senhor está presente em nós, revelando seus segredos ao nosso coração. Eis uma das razões para se permanecer nela, muito embora o Senhor se deixe revelar não apenas na cela, mas, em tudo aquilo que Ele criou. Todavia, ela é doce útero que forma um carmelita como filho da graça e lhe ajuda a experienciar o mel da doçura de uma vida toda ela cristificada.
Com o pedido da Regra para que se permaneça na cela em oração, vemos que o ato de rezar, de estar em comunhão com Jesus, deve tornar-se vida em nossa vida e, deste modo, nossa vida e nossa existência começam a desabrochar em oração, em relação com Deus, por Jesus, no Espírito. Permanecer sempre na cela ou perto dela é antes um permanecer na interioridade, na cela do nosso coração; esta, nós a levamos para todos os lugares, a outra, a exterior, é necessária, mas é apenas resultado da cela interior.
Seguindo a leitura da Regra, no capítulo décimo, encontramos um pedido que ilumina e nos faz compreender o porquê da constante insistência do Carmelo na vida de oração. Com este pedido podemos dizer que esta dita Ordem coloca o Cristo Jesus no seu centro, como a luz que ilumina toda a casa e quem nela venha a entrar. Afirma Bento XVI que, “onde o olhar em Deus não é decisivo, todo o resto perde sua orientação” (Ratzinger, 2021. p. 13) Sem este olhar contínuo para o Senhor nós não podemos saber o caminho. Mas, vejamos o que diz a Regra,
O oratório, conforme for mais fácil, construa-se no meio das celas e aí vos devereis reunir todos os dias pela manhã para participar na celebração eucarística, quando as circunstâncias o permitam (RC, 10).
Este oratório de que fala a Regra é a capela, que deve ser construída no meio das celas. Com isso fica claro para qual direção se deve olhar dentro do Carmelo: para o meio, o centro, onde o Senhor habita, não esquecendo que ao lado de uma cela há outra, e assim por diante, para nos relembrar que o meio e centro de tudo é o Senhor, e que não caminhamos a sós, caminhamos com os irmãos. Por isso, na capela devemos nos reunir para a Ação de Graças, isto é, a Eucaristia, que é a comunhão no Corpo do Senhor, mas que é também comunhão com os irmãos. Se somos Igreja, formamos um só Corpo, no Senhor Jesus. Deste modo,
A Eucaristia é o Sacramento dos sacramentos onde o corpo místico de Cristo manifesta toda a força da Transfiguração e realiza seu Mistério na Igreja. O Pai, nos faz participar com Cristo de sua comunhão em Liturgia eterna, o Espírito, nos capacita para viver a Eucaristia com a misteriosa sinfonia do Verbo Encarnado. Pelo Espírito, que tudo o que vive e respira, é reunido na unidade do Filho e canta a alegria do Pai. O Espírito é o que nos permite participar e fazer vida o Mistério da Páscoa de Jesus, na Liturgia da Igreja (García; Ávalos, 2009, p. 322).
Dentre algumas coisas que a Regra do Carmo nos pede, duas dessas são lugares teológicos, ou seja, neles Deus se manifesta de maneira singular, que são a capela e a fraternidade. Se a capela se encontra no centro da vida carmelita, a comunidade é chamada a acorrer a ela e em fraternidade se une para louvar a Deus Pai. Capela e fraternidade são, portanto, lugares pericoréticos, neles a Trindade se move e se revela a cada um de nós.
A tradução portuguesa da Regra do Carmo, neste mesmo capítulo, amplia nosso sentido e vivência espiritual quando afirma que os Carmelitas devem se reunir para a Eucaristia. O sentido do termo Eucaristia é muito maior e mais amplo do que o termo “missa”, muito embora que na celebração da missa a Eucaristia aconteça. Contudo, por Eucaristia compreendemos não apenas o ato litúrgico em si, também, mas, o olhar se torna fecundo, pois toda a vida carmelita deve ser uma eucaristia na vida eclesial.
Neste mesmo capítulo ainda, percebemos que nos é determinado um horário de encontro: deve ser pela manhã. É claro que aqui não se trata de rezar, participar, entrar em comunhão com o mistério de Jesus Cristo apenas pela manhã; contudo, quando na Regra se nomeia um horário, é para dizer que Cristo Jesus deve sempre ser o primeiro de nossa existência, por isso o fato de ser pela manhã, para que logo cedo sejamos “invadidos” pelo Sol Nascente, que nos vem visitar.
A oração pela manhã nos recorda ainda a ressurreição de Jesus Cristo, e com isso somos mergulhados, mesmo que não percebamos, no Mistério da Páscoa do Senhor, Mistério esse que é fundamento e razão da fé cristã e consequentemente da vida carmelita. Sem a Páscoa do Senhor em nossas vidas, nada faria sentido, e até mesmo o Carmelo teria fracassado; contudo, da Páscoa de Jesus Cristo brota a vida e o espírito que anima esta Ordem, dá perseverança aos que a escolhem e desperta novas vocações para a Igreja por meio do Carmelo. Por isso, o despertar pela manhã para a oração, não deveria nunca ser pesado e nem muitos menos tratado como se fosse uma mera obrigação, ou tido como algo opcional, mas, antes, como um ato de amor, pois,
Orar define e abarca a vida do(a) carmelita[…] Tratar de amizade, estando muitas vezes a sós, tratando com quem sabemos que nos ama é o enamoramento que cativa a alma do(a) carmelita e faz dele(a) um(a) enamorado(a) do Deus vivo (Carmelo de Cristo Redentor, 2018, p. 35,36).
Deste modo, se pode ver que a Regra coloca a vida litúrgica no centro de sua existência. A liturgia é a grande porta aberta ao Mistério. Pela liturgia, adentramos a perfeita e plena comunhão com Ele, pois ela, conforme afirma a Sacrosanctum Concilium “é o exercício da função sacerdotal de Cristo” (SC, n: 7). De tal modo chega a liturgia a nos abrir esse Mistério em que o próprio Senhor se faz o alimento.
Primeiramente, Ele nos alimenta com a acolhida na sua graça, depois, com seu perdão, onde cura nossas feridas. Ele nos alimenta ainda com a sua Palavra que nos orienta os passos – e aqui temos uma chave de leitura abundante para a vida carmelita, pois, da mesma forma que não se compreende um carmelita que não ame a Mãe de Deus, também não se compreende um carmelita que não apenas conheça, mas, que não viva diariamente da Palavra de Deus. E se ofertando ao Pai em sacrifício de amor por nós, vem ao nosso encontro pelo seu Corpo e Sangue, e a partir daí, já não somos dois, mas um só: Ele em nós e todo o nosso ser e existência n’Ele. Depois da comunhão, absolutamente nada mais pode nos separar d’Ele. Estamos de tal modo cheios d’Ele que poderíamos dizer que já vivemos um céu antecipado.
3. A cela como formadora e educadora do filho da graça
A existência da cela, na arquitetura física dos nossos conventos e mosteiros, e na arquitetura espiritual de nosso itinerário de subida ao Monte de perfeição, é como uma colmeia, onde se é produzido e se guarda o mel, caso contrário, pode vir a ser estragado o néctar mais puro e natural que em lugar algum pode ser encontrado. Pois, assim como uma colmeia consegue guardar e preservar aquela doce substância que ali as abelhas produzem, da mesma forma, a cela preserva da mundanidade espiritual, se assim nós permitirmos, o doce mel que é formado em nós pela comunhão com Jesus Cristo, mel este, que deve ser dado aos irmãos e nunca retido consigo mesmo.
A permanência na cela temporal e espiritual forma e educa os filhos do silêncio e da solidão do Monte no seguimento do Senhor Ressuscitado. Esta permanência não é algo superficial ou uma fuga do mundo e/ou dos irmãos. Basta olhar para a vida de Tito Brandsma, carmelita holandês martirizado em Dachau e podemos contemplar a beleza que a cela produz na vida de alguém, não a cela pela cela, antes, porque nela habita o próprio Cristo Jesus e nela estando e se ocupando com aquilo que lhe é próprio encontramos o Senhor que a habita conosco. A permanência na cela forja espiritualmente os filhos da graça que querem crescer no amor a Deus e na total doação a Ele.
Para Tito Brandsma, o permanecer na cela não era um peso ou mera obrigação, antes, tal permanência se torna como que um habitar o útero da graça onde se é formado pelo próprio Senhor, tanto que, quando preso, antes de ser levado ao Campo de Concentração no seu famoso poema “Diante do Crucificado”, Tito pede que ninguém o venha encontrá-lo apenas porque, livre ele deseja na solidão achar-se. Curioso é ainda tal afirmação de Tito de que na solidão deseja achar-se. Isso não nos deveria causar espanto ou admiração pois sem o encontro consigo mesmo é impossível encontrar-se com o Senhor que nos habita e a solidão é essa porta aberta ao encontro consigo mesmo.
De São Bento se diz que: “e ele foi habitar consigo mesmo”. Tal afirmação podemos aplicar na vida dos santos carmelitas, em especial de Tito Brandsma. Ele, Tito, eles e elas, tantos outros milhares de homens e mulheres formados à sombra das férteis árvores do Carmelo, foram sempre religiosos, religiosas e leigos que, escolhendo habitar consigo mesmo, na solidão da cela física, mas, sobretudo, da cela espiritual, habitaram com Jesus Cristo. Por isso, a cela torna-se preciosa para o desenvolvimento da vocação carmelita e da vida interior no monte de Elias.
O ato de permanecer na cela, longe de ser uma fuga dos irmãos – muito embora se não cuidarmos da fraternidade isso possa vir a acontecer – é um fazer a experiência de Maria, irmã de Marta e Lázaro que escolhe está aos pés do Senhor, ou como João, que reclina a cabeça ao peito do mestre. Com esta permanência não se encontra a alma longe das tentações e fragilidades, no entanto encontra ela a força necessária para seguir seu caminho em direção ao cume do Monte, força essa que nasce sempre da comunidade e intimidade com Aquele que sempre nos antecipa nela: Jesus Cristo.
Por isso, a cela interior de um carmelita, pode ainda ser comparada ao espaço celebrativo da Liturgia, espaço este que é sagrado por natureza, pois, além de ser criado para o ato sagrado da Igreja, nele acontece o Mistério Pascal. De modo semelhante é a cela interior de alguém que no Carmelo deseja viver a santidade: esta constitui, pois, um espaço sagrado, de intimidade profunda, onde a alma pode se encontrar com seu Amado e ser encontrada por Ele, pode ainda dar-se a Ele e permitir que Ele se dê a alma. Deste modo, a sacralidade da cela no Carmelo é ainda caminho para construção de um reto agir moral, isto é, de um agir segundo o agir de Cristo Jesus, isso pelo fato de que, a solidão da cela nos leva a estar cara a cara com nossa consciência que, segundo o Concílio Vaticano II, é o espaço sagrado da alma, e, diante de nossa consciência, nenhuma mentira ou farsa se mantém de pé e em paz.
Assim a cela é formadora e educadora de filho da graça. Ela forma porque somos carmelitas, e como tais, entramos numa Ordem que possui características e ações próprias que a identificam na vida da Igreja. No entanto, a cela é ainda educadora, ou seja, a permanência física e espiritual nela ajuda aqueles que desejam crescer na vida interior a encontrar e tornar fecundo os dons que Deus concede a cada um. Se a questão da permanência na cela é vista sob o viés da formação, é para que de fato sejamos carmelitas, com aquilo que é próprio do Carmelo, muito embora reconheçamos o valor de outras famílias religiosas.
Da mesma forma a cela é educadora na vida espiritual, pois, ajuda-nos a encontrar dentro de nós os dons que o Senhor concede a quem se abre à sua ação e não coloca empecilho ao Espírito Santo, mas, abre-se inteiramente a ação divina, a estes, somente Deus sabe aonde chegarão, pois, não puseram obstáculo à sua ação. Assim viveram todos os santos e santas do Carmelo, numa total abertura e comunhão com o Espirito Santo que, nesta Ordem os chamou sempre ao silêncio e permanência na cela, mesmo aqueles que se dedicaram a vida ativa e missionária, e embora não sejam ainda reconhecidos pela Igreja universal, são homens de Deus e modelos de santidade que podem ser luzes que apontam Luz Verdadeira: Jesus Cristo, para os nossos dias, tais como, Bartolomeu Xiberta, Brenninguer, Valabek, Lourenço ou ainda um catalão nordestino: José Maria Casanova.
4. Formados para a interioridade
Neste sentido, a permanência na cela educa também para a interioridade, aquela interioridade que brota do íntimo do coração do homem e sem a qual talvez não seja possível uma maior vivência interior da Liturgia. A cela é como uma sacristia onde a alma pode se preparar espiritual e fisicamente para a Liturgia –dentre tantos meios para essa preparação, a Lectio Divina e a meditação atenta de cada gesto que contém a Ação Sagrada é um deles. Deste modo a interiorização que a cela proporciona ao coração e à mente do homem e da mulher de hoje, é como uma perfeita via por onde não apenas a alma recebe os dons de Deus, mas antes vai ao encontro d’Aquele que é o centro da Liturgia e o Obséquio de todo o Carmelo: Jesus Cristo.
A dinâmica da interiorização deve, portanto, estar no coração da liturgia, porquanto, se os textos e os gestos da liturgia não chegam a ser interiorizados por quem participa da liturgia, estes textos e gestos não se tornam o alimento do cristão, não formam sua identidade profunda de cristão. (Boselli, 2019. p. 157).
Quando formamos para a interioridade, formamos e somos formados para as coisas que nascem de dentro, da vida interior, especialmente a escuta atenta e amorosa do coração de nosso Mestre, Jesus Cristo. Sem essa escuta atenta a vida interior no Carmelo perde-se em sua razão de ser e fica desorientada por completa. Sem a escuta do Divino Mestre, nenhuma vocação é capaz de crescer e produzir bons e doces frutos, em lugar algum, muito menos no Carmelo. Podemos aprender de São Bento aquilo que ele pede no princípio de sua regra a seus monges que, no seguimento a Cristo nada anteponham eles ao Seu amor. Tal desejo e pedido do pai dos monges ocidentais podemos ler sob o ponto de vista do estar sempre atentos a voz do Mestre e abertos de coração às suas inspirações.
5. Eucaristia: caminho de transformação
Não é possível uma vida espiritual autêntica e profunda longe da Eucaristia. Diante deste fato, podemos nos lembrar daquelas pessoas, que, por algum motivo, não podem receber o Corpo do Senhor sacramentalmente, mas que vivem em tal comunhão com o Senhor, que é como se O recebessem na Eucaristia. Talvez, tais pessoas vivam em comunhão mais perfeita com Ele de que muitos daqueles que O recebem quase que diariamente no sacramento do Altar.
Quando se diz que não é possível uma vida espiritual longe da Eucaristia, afirmamos isso apenas pelo fato de que a Eucaristia é o próprio Senhor, Ele mesmo se faz menor que nós, para não nos assustar em sua grandeza e vem de forma pequenina, com características de pão, ao nosso encontro. “Na Eucaristia e em todos os Sacramentos, é garantida a nós a possibilidade de encontrarmos o Senhor Jesus e de sermos alcançados pelo poder de sua Páscoa” (Desiderio Desideravi, 2022, n. 11).
O fato de a capela ou o oratório estar construído no meio das celas, implica que, todos os dias, saiamos de nossa cela, da comodidade, das nossas coisas, do nosso descanso ou fuga para irmos ao encontro d’Ele, pois “a Liturgia nos garante esse encontro” (Desiderio Desideravi, 2022, n. 11), e assim encontramo-nos no caminho com os irmãos e irmãs que habitam conosco. Podemos dizer que esse sair das celas e ir ao oratório nos abre caminho para um itinerário de transformação: encontrar-se com o outro, sentir a dor do outro, as suas necessidades e deixar que o outro sinta as nossas, revela-nos a ternura eucarística do Senhor, que sempre cuida de cada um de nós, por meio dos nossos irmãos e irmãs.
Sendo assim, a liturgia adquire agora uma outra perspectiva, não apenas de culto, mas, agora, unindo culto e vida, encarnando o que se celebra com aquilo que se vive, pois, o culto verdadeiro não é outra coisa que a vida concreta, com a de Jesus. Assim, a vida torna-se liturgia, (Cf: Castellano, 2008) e isso acontece porque o Senhor se encarna em nossa humanidade e nesta mesma humanidade morre e ressuscita. A morte do Senhor na cruz não constitui um ato litúrgico, mas sua entrega ao Pai por amor e pela salvação da humanidade faz com que tal momento incruento e doloroso se transforme num culto agradável ao Pai. Podemos assim unir nossas vidas àquilo que celebramos, nossas palavras com aquilo que rezamos, nossos atos com os nossos louvores.
Vejamos o que nos diz Clemente de Alexandria,
Quem verdadeiramente conhece a Deus, não o honra em um lugar ou em um tempo determinado, nem em dias de festa preestabelecidos, mas em todas as partes e em todo tempo, tanto sozinho, como com outros irmãos na fé… por isso, nossa vida se transforma numa celebração contínua, animada pela fé na onipresença divina que por toda parte nos rodeia: trabalhamos a terra e louvamos a Deus como um amigo íntimo, de coração para coração, por isso conserva em toda ocasião sua mente vigilante e alegre (Antologia, 2015, p. 194).
Vimos que, desde os Padres da Igreja, liturgia e vida podem e devem se configurar de tal modo que uma seja o reflexo da outra. A partir do momento em que vivermos assim a liturgia que celebramos, veremos seus frutos e nossas vidas transformadas. Para Orígenes, a partir do momento em que os cristãos começam a viver o culto, os mesmos são transformados em templos de Deus e desta forma se tornam sacerdotes espirituais que se oferecem nos seus atos como sacrifício de louvor ao Pai.
Quando começamos a buscar o Senhor deste modo, celebrando na vida aquilo que rezamos e celebrando no Altar, pois a espiritualidade que emana da liturgia é também uma atividade comunitária, é que a Eucaristia começa a ser para nós um itinerário de transformação, onde nossas vidas são guiadas por Ele e para Ele e assim a Eucaristia já não nos é algo que buscamos apenas quando precisamos, ou quando não nos sentimos bem, ou somente por obrigação de nossa fé cristã, mas agora, nossa vida mesma se torna uma eucaristia onde o Senhor a recebe em seu coração por meio da vida de tantos irmãos e irmãs que se encontram conosco.
Rezando e vivendo assim é que o Carmelo compreende a oração e a liturgia. Ambas partem do coração do homem ao coração do Altar, Jesus Eucarístico. Mas, antes de chegar no coração do Altar esta oração toca o coração de tantos irmãos e irmãs, que convivem conosco ou se encontram conosco em nossas ruas. Daí a necessidade do sair da própria cela e ir à capela: com este ato, nos encontramos com a dor de Cristo nos irmãos e a dor dos irmãos em Cristo.
Conclusão
Cela e capela, assim como toda a vida carmelita, constituem um meio de contínuo encontro com Jesus Cristo. Não se trata de uma ideia, de um pensamento, de um simples desejo, ou uma boa intenção. A vivência no Carmelo convida a uma vida real, a uma existência verdadeira e que encontra sentido e razão de ser no obséquio ao Senhor, tal como nos pede a Regra no capítulo segundo: “deve viver em obséquio de Jesus Cristo e servi-lo fielmente de coração puro e boa consciência” (RC, n. 2).
O capítulo segundo da Regra do Carmo, logo após a saudação inicial de “salvação no Senhor e benção do Espírito Santo” (RC, n. 1), delineia toda a vida do Carmelo, e é justamente a partir do obséquio a Jesus Cristo que toda a Regra, e consequentemente a vida carmelitana, toma forma e sentido de ser e de existir na Igreja.
Da cela à capela, um(a) carmelita é chamado(a) a partir do obséquio a percorrer um itinerário de transformação, ou seja, de cristificação. Itinerário esse que foi levado a sério e vivenciado por todos os santos carmelitas, até mesmo aqueles que talvez nunca estejam na glória dos altares e que somente Deus e as paredes dos claustros “conheçam” a santidade, e que procuraram viver na fidelidade diária.
A fidelidade à espiritualidade e àquilo que é próprio do Carmelo é como nossa resposta ao precioso dom de Deus que é a vida carmelita. Assim sendo, quando por ventura temos uma diminuição das vocações, é um sinal claro que estamos nos afastando de nosso ideal e por isso, Deus cessa de nos enviar vocações para que possamos fazer um bom exame de consciência e retomar o caminho do obséquio d‘Ele.
Assim, “cultivar a presença de Deus será, portanto, o mesmo que procurar a face do Deus trino presente por toda a parte” (Marie, 1959, p, 29), da qual os(as) carmelitas são contínuos sedentos e buscadores. A vida carmelita pode ser cheia de significados para aqueles que desejam se unir ao Senhor. No Carmelo, entramos nas terras mais belas, nos recorda santa Elizabete da Trindade, contudo, essa beleza para ser real, necessita diariamente ser assumida por todos aqueles que habitando esta santa Montanha, fazem de Jesus Cristo a razão de suas vidas.
Referências
ANTOLOGIA LITÚRGICA. Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2015.
BOSELLI, Goffredo. O SENTIDO ESPIRITUAL DA LITURGIA. Brasília-DF: Edições CNBB, 2019
CASTELLANO, Jesus. LITURGIA E VIDA ESPIRITUAL. Teologia, Celebração, Experiência. São Paulo: Paulinas, 2008.
Carta Apostólica DESIDERIO DESIDERAVI. São Paulo: Paulinas, 2022.
Carmelo de Cristo Redentor. UMA ENAMORADA DE DEUS VIVO. Avessadas: Edições Carmelo, 2018.
CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium – SC. In: ENQUIRÍDIO DOS DOCUMENTOS DA REFORMA LITÚRGICA. Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal. Fátima, 2014
GARCÍA, Rosa Maria; ÁVALOS, Rosario. EL MANANTIAL DEL CARMELO. EL CARISMA CARMELITA FUNDAMENTOS Y PERSPECTIVA. Madrid: Gráficas Libecrom, S.A. MURCIA, 2009.
MARIE, François de Sainte, OCD. PRESENÇA DE DEUS. São Paulo: Editora Flamboyant, 1959.
REGRA DO CARMO. Braga, Empresa do diário do Minho, 2022.
RATZINGER, Joseph. TEOLOGIA DA LITURGIA. O FUNDAMENTO SACRAMENTAL DA EXISTÊNCIA CRISTÃ. Brasília: Edições CNBB, 2019.
RATIO INSTITUTIONES VITAE CARMELITAE. Roma: Cúria Generalícia dos Carmelitas, 2013.
SILVA, Fr. José Adriano, O.Carm. A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA MORAL NA RATIO INSTITUTIONES VITAE CARMELITANAE. Recife/PE: SGuerra Design, 2022.
- Frade Carmelita. Professo na Ordem dos Carmelitas desde 2017. Pertence a Província Carmelitana Pernambucana. Licenciado em Filosofia pela FAFICA de Caruaru e Graduado em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. Membro do Instituto de Espiritualidade Tito Brandsma e da Associação dos Liturgistas do Brasil – ASLI.
↩︎