Aquele 25 de março de 1938

por Frei Rogério Lima, O. Carm

Este artigo integra a obra “Ir aonde ninguém quer ir”, que narra a história e o carisma da Congregação das Irmãs Missionárias Carmelitas, fruto do período da restauração do Carmelo Brasileiro nos inícios do século passado. Podemos conhecer nas linhas aqui apresentadas um pouco do percurso missionário de duas grandes figuras, não tão bem conhecidas, mas que escreveram através de seu testemunho missionário esta bela página para a história eclesial, partilhando o dom do Carmelo, na fidelidade ao Espírito Santo e a rica tradição desta corrente de espiritualidade carmelitana.

Poder-se-ia apresentar alguém fora de seu contexto familiar? Uma pessoa sempre poderá agrupar em torno de si mesma inúmeros elementos que fazem com que descubra e persiga outras vias de conhecimentos e experiências, ou seja, reunirá sempre condições para ultrapassar os limites de seu ambiente costumeiro de vida e dilatar bem o trajeto de sua história. Assim, preferimos dizer que uma pessoa é a soma de muitas experiências, contextos e ambientes nos quais viveu e compôs sua história.

A leitura do perfil histórico destas duas figuras – Frei Casanova e Madre Carmelita – nascidas na transição dos séculos XIX e XX, ajuda também a descobrir, recolher e apontar alguns traços próprios de tempo delas, mas principalmente alcançar uma compreensão mais precisa do porquê da obra delas: como nasceu, cresceu e se desenvolveu.

Apesar de ser uma leitura de corte histórico breve, a experiência religiosa das Missionárias Carmelitas necessariamente conduz a um diligente olhar aos documentos que nos ajudam a melhor  descrever os dois protagonistas mais importantes deste grupo religioso, que embora não tendo um caminho tão largo, transmitem à comunidade eclesial o testemunho da assimilação de um carisma inspirado na tradição do Carmelo.

 O Carmelo semeado no sertão nordestino

Em 1938, Madre Carmelita, egressa das Beneditinas, que vivia uma nova tentativa fundacional, recebeu de D. João da Mata (bispo de Cajazeiras/PB) a proposta para se unir ao recém-formado grupo fundado por Fr. Casanova, que vivia em Princesa Isabel/PB, constituindo uma única Congregação. Irmã Maria José acolheu obedientemente, juntando-se e integrando-se a esta nova experiência, tornando-se também uma cofundadora, devido a sua vivência como religiosa beneditina e, particularmente, sua experiência fundacional em andamento

Madre Carmelita, revestida de seu novo nome, constituiu uma diferença qualitativa no grupo fundacional das Carmelitas, em Princesa Isabel. O grupo de Fr. Casanova não estava bem liderado, muitas entravam e saiam e, do grupo da fundação apenas sobrou ela mesma que não pertencia ao grupo inicial, o que não significa dizer que não viveu a experiência fundacional. Ela exerceu um papel fundamental, pois Fr. Casanova não conseguia reunir entre as primeiras escolhidas uma líder e portadora de um carisma religioso. Foi extremamente dedicada à tarefa de nascimento de uma nova família religiosa. Era a Madre, a educadora, a orientadora, a conselheira e formadora das demais, mas acima de tudo era irmã, que crescia e se nutria na mesma fonte e tradição carmelitana numa situação de formação como todas as demais.

Madre Carmelita
Frei Casanova

Fr. Casanova buscava instruir o novo grupo nos valores da espiritualidade carmelitana e Madre Carmelita, naqueles referentes à vida humana e religiosa em geral. Ela transmitiu às Irmãs o seu exemplo de firmeza, de pessoa humilde, plena de fé e esperança a todas que estiveram sob a sua orientação. Nutrida de uma profunda confiança em Deus, busca trabalhar incansavelmente, para sustentar o projeto carmelitano, o qual assumiu com muito zelo e acentuada dedicação.

O testemunho de sua vida foi o maior testamento deixado às suas Irmãs de hábito. Depois de um longo percurso de itinerância que assinalou a sua experiência religiosa, encontra no Carmelo o seu lugar, nele convergem os muitos elementos de seus anseios de mulher consagrada e realizada. Tornou-se membro de uma família religiosa que tudo tinha a ver com o que buscava: o recolhimento, o silêncio, a oração, o serviço, a fraternidade, a vida austera e ascética, a necessidade de trabalho para a sustentação, a consagração mariana e a centralidade da eucaristia. Todos estes são elementos que caracterizavam nela não apenas um mero cumprimento externo, mas algo que cultivou e soube viver e transmitir às demais, desde o difícil caminho fundacional até a aprovação definitiva.

Daquilo que se conserva ainda vivo dos depoimentos das Irmãs que tiveram o privilégio de conhecer e conviver com a sua cofundadora, se pode dizer que era uma mulher sensível e inteligente; dedicada ao trabalho prolongado até altas horas da noite; portadora de uma cultura e aprendizado suficiente para liderar e coordenar. Esteve durante muitos anos à frente da educação escolar, fortalecendo este serviço desde o início da Congregação. Sendo um dos componentes que integra, parte das atividades de sustentação das Irmãs até os dias de hoje.

Madre Carmelita desenvolveu bem os seus talentos naturais: o gosto pela música, a sua índole artística, a capacidade de escuta e discernimento, a belíssima caligrafia que encanta qualquer pessoa que lê os documentos escritos e assinados por ela. Era uma pessoa portadora de uma beleza interior que atraía e fazia com que todos/as se sentissem bem ao seu lado, por sua mansidão e bastante humanidade. Não era uma defensora de severas penitências, castigos exagerados, nem tampouco palavras rudes para com aqueles/as que caiam em faltas. Os últimos dias de sua vida foi numa cadeira de rodas dedicada aos seus bordados, confecção de paramentos litúrgicos e conversa com suas Irmãs e tantas outras pessoas mais ligadas à vida da Congregação.

A experiência religiosa dos fundadores

Da Madre Carmelita o que se supõe é que tenha ingressado na vida religiosa já em idade adulta, ou seja depois dos vinte e um anos, vivendo o seu processo de preparação religiosa e emitindo os seus votos na Congregação das Beneditinas de Tutzing, no ano de 1926. Permaneceu quatorze anos nesta família religiosa, o que se presume que tenha concluído todo o seu processo de formação, emitindo seus votos perpétuos, porque ao deixar as Beneditinas pelos motivos anteriormente apresentados, teve de solicitar dispensa a Sagrada Congregação para a Vida Religiosa. Não sabemos bem quais as atividades que desempenhava em comunidade por limites de documentos presentes no Arquivo da Casa Geral, neste sentido.

O período de mais ou menos três anos, no qual transitou entre a experiência beneditina e a carmelitana, que definirá não apenas seu novo nome servirá, acima de tudo, para maturar o projeto de vida tão desejado por ela. Ausente do claustro, continuou a viver como religiosa e fazia questão de se apresentar desse modo nas duas curtas estadas de Salgueiro/PE e Cajazeiras/PB, que não superaram o período de três anos. Contou sempre com o referencial das autoridades diocesanas, o que garante que amadureceu o seu espírito, movida por um forte sentido eclesial e partilhado comunitariamente.

A sua experiência de consagrada nada sofreu, no sentido de manter a fidelidade do seu estado de vida religiosa, com os seus votos. O fato de ter deixado o claustro beneditino não produziu rupturas, muito serviu para maturar algo de tão grande importância para o serviço da Igreja do Nordeste, isto é, a nova Congregação. Fez questão de vincular suas duas experiências à Igreja onde serviu, seja em Petrolina/PE seja em Cajazeiras/PB, as quais foram o berço de sua nova Congregação, em fase ainda gestativa embrionária.

Sobre a experiência religiosa do Fr. Casanova, como já foi bem exposto, viveu desde muito cedo seu despertar religioso, num ambiente de ressurgimento da vida religiosa. Depois do longo período em que a vida religiosa passou pelo forçado silêncio no seu país, que atingiu também o Brasil, gerando um declínio dos consagrados. Fr. Casanova foi um dos primeiros brotos do Carmelo catalão, depois da exclaustração, convivendo durante toda a sua formação neste contexto de restauração, refundação, fundação e missão.

Estava introjetada em sua mente, em suas ideias e em suas convicções o amor por tudo que era da Ordem e o desejo de recuperá-la. Prontamente soube discernir que o maior e mais belo patrimônio a ser restaurado são as pessoas. Neste sentido, foi muitas vezes mal interpretado pelos seus confrades, mas entregou-se de corpo e alma pelas vocações carmelitas no Nordeste.

A experiência fundacional na origem da Congregação

À Madre Carmelita é quase sempre designado o papel de co-fundadora, reservando a ela uma parcela de influência frente ao inquestionável papel de fundador, garantido ao Carmelita catalão fr. Casanova. Na tentativa de aprofundar melhor a gênese e fundação, bem como a motivação e os primeiros passos que orientaram a vida deste grupo se faz plausível considerar esta reflexão de outrora, que tantas vezes foi sublinhada ao se abordar esta questão, não precisamente sobre esta referida Congregação, mas acerca da “origem e fundadores” da Ordem do Carmo, o qual muito inspira a experiência carismática vivida e transmitida por fr. Casanova e Madre Carmelita:

Como na filosofia, também na história muitas discussões são oriundas do fato de que não existe uma definição exata do sentido da palavra em torno da qual gira a discussão […]. O que significa fundar, ser fundador e fundação? Se antes se elaborasse um dicionário histórico, no qual se definisse exatamente o sentido da palavra “fundador”, a discussão terminaria no mesmo instante. Em nosso parecer, o fundador é aquele a quem compete a causalidade principal. Quem fundou a Ordem Carmelitana? Respondemos sinceramente: aquele que foi a causa principal! Sem a figura gloriosa e contemplativa do grande profeta Elias, jamais se pode explicar a origem da Ordem Carmelitana. Embora tenha desaparecido de há muitos séculos, sua figura central se encontrava no século XIII no Monte Carmelo. É verdade que os primeiros eremitas que moravam perto da fonte de Elias – juxta fontem Eliae – construíram o primeiro Carmelo, mas jamais o teriam feito nem o poderiam ter feito sem a figura do grande profeta Elias. Elias foi a causa principal. Perguntamos mais uma vez: quem fundou a Ordem Carmelitana? Depende do modo de encarar o sentido da palavra “fundar”. (Cf. Meinen., 50 Anos da Restauração, in Mensageiro do Carmelo, Nov.Dez(1954), Ano XLII/11, 230-231).

No coração e na mente dos dois fundadores pairava uma inquietude que os conduziu a partilhar com outros e fazer nascer a experiência religiosa da Congregação de modo organizado e estruturado. O ambiente missionário deles era quase o mesmo, as preocupações também se aproximavam, ambos anelavam por uma comunidade fraterna a serviço dos menos favorecidos no coração do sertão nordestino, tão relegado e desprovido de estruturas e assistência. A sensibilidade pela educação como caminho e serviço de promoção da vida era uma ideia comum entre eles, mas basicamente o que facilitou a fusão de modo edificante das duas diferentes experiências, em seu curso inicial, foi o dom da vida religiosa como serviço à Igreja já presente na vida de ambos.

Houve uma oportuna e necessária aglutinação das duas experiências, algo fundamental neste processo fundacional. Evidente, a figura de D. João da Mata Amaral não pode ser desmemoriado, especialmente, a forma como lidou com a gênese desta Congregação. Talvez, seja uma figura pouco ressaltada na leitura das fundações. Na competência da função revestida cumpriu a tarefa de catalisador das duas experiências carismáticas: acolheu, uniu e possibilitou a corroboração de um projeto comum no seio de sua Igreja particular. Não convém ainda esquecer o contexto permeado de tantas indefinições e provações presentes no cenário da Igreja e do mundo. D. João da Mata, mergulhado nas contingências de sua vasta diocese, também não vislumbrava de modo tão nítido o futuro do grupo, mesmo depois de unificado.

As duas experiências nasceram de respostas exigentes, reflexo deste ambiente conflitivo de sua época, caso queiramos ver as coisas com um olhar ampliado. Fr. Casanova liderava a restauração de uma Província permeada de problemas e tantos desafios. Madre Carmelita tomou uma decisão corajosa de deixar uma experiência estabilizada, buscando construir uma vida mais fraterna de diálogo e serviço, em meio a um quadro de incertezas e inseguranças.

Num olhar mais crítico se poderia dizer que ambos lideravam os seus grupos em situação limite ou numa crise inicial de percurso. Tanto um quanto o outro já levavam um curto período buscando organizar seu grupo. Um, orientando desde fora e a outra crescendo e vivendo a partir de dentro, refletindo, sofrendo e se alegrando com as pequenas e grandes conquistas.

Na vida de ambos já contam com a vivência e a formação dos valores da vida religiosa, maturada e enriquecida por ganhos e perdas, sabores e dissabores. Não eram ingênuos a ponto de arriscarem por arriscar, pretendiam construir numa perspectiva de continuidade. O desafio de ambos era o como transmitir esta convicção, o como fazer com que as demais pessoas assimilassem os seus projetos e o como torná-los viáveis e factíveis. Neste ponto se interpõe o papel aglutinador de D. João da Mata, possibilitando concretizar os ideais que ambos nutriam.


"Deus é comunicativo" (Sta. M. Madalena de Pazzi, O.C)
Rolar para cima