O autoconhecimento nos escritos de Santa Teresa de Jesus
Frei Harrison Cordeiro, O. Carm.1
Conhecer a Deus, é claro, é a busca principal de todo homem que o teme. Deus Pai Criador se faz conhecer de muitos modos em sua criação. Jesus Cristo é Deus feito homem no seio puríssimo de Maria. O Espírito Santo é o Santificador que traz todo dom de ciência e conhecimento.
O Conhecimento, no Antigo Testamento, se resume em pertencer à verdadeira religião do povo escolhido de Israel. Principalmente o Profeta Jeremias fala desse conhecimento em sua profecia: “Aquele que queira gloriar-se glorie-se disto: de ter a inteligência e de me conhecer, porque eu sou Iahweh que pratico o amor” (Jr 9,23). Em Oseias o “conhecimento de lahweh” acompanha o hésed, (amor). Não se trata, pois, de simples conhecimento intelectual. Do mesmo modo como Deus “se faz conhecer” ao homem unindo-se a ele por aliança, manifestando-lhe por seus benefícios seu amor (hésed), assim o homem “conhece a Deus” pela atitude que implica a fidelidade à sua Aliança, o reconhecimento de seus benefícios, o amor na literatura sapiencial, o “conhecimento” é quase sinônimo de “sabedoria”.
Cristo é a fonte sublime do conhecimento de Deus no Novo Testamento: “eu sou o Bom Pastor, conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem” (Jo 10, 14). É Ele o caminho que leva a Deus que, embora nunca tenha sido visto, revelou-se e deu-se a conhecer no Filho Unigênito (cf. Jo 1,18).
À perspectiva de conhecer a Deus, contudo, se soma a dimensão de conhecer a si mesmo. Como barro nas mãos do oleiro, nos deixamos moldar por Deus (Je 18,6). É preciso nos questionarmos e verificarmos: que barro é esse? Quem sou eu, esta matéria prima onde Deus trabalha e age? Assim como um agricultor conhece a terra antes de cultivá-la, todo cristão deve conhecer o terreno de si mesmo como base para uma evolução espiritual.
Podemos pensar que esse processo de autoconhecimento esteja muito claro somente na contemporaneidade, fruto de tantas abordagens psicológicas e psiquiátricas, práticas de autoajuda e autoanálise, todas resultado do antropocentrismo, em que o homem se tornou o foque do estudo filosófico, ético, histórico e cultural, mas também espiritual. Porém já na antiguidade os gregos tinham isso como verdade, por exemplo no aforismo do oráculo de Delfos “conhece-te a ti mesmo”. No período medieval a maioria das buscas de conhecimentos eram ligadas à doutrina Cristã Católica, ou seja: conhecer a si mesmo é um requisito somente para conhecer Deus e segui-lo fielmente.
É nesse contexto medieval que se encontra a monja carmelita Madre Teresa de Jesus2. Santa, Reformadora da Ordem do Carmo, fundadora da Ordem dos Carmelitas Descalços, conhecida pelas tantas experiências místicas e sobrenaturais e por seus escritos profundos, que a deram o título de Doutora da Igreja e mestra da vida de oração, pelo Papa Paulo VI.
Com tantos títulos e feitos, Santa Teresa não esqueceu a importância de conhecer a si mesma. Talvez tenha sido por ter grande preocupação em se conhecer que tenha chegado aonde chegou. Ela tinha conhecimento pleno de suas dificuldades e limitações, mas sabia também quais as suas qualidades e onde podia investir suas energias e sabedoria pelo Reino de Deus. Os seus escritos, tão volumosos, estão recheados de ensinamentos, em que a santa sempre reforça: conhecer-se é o primeiro passo para conhecer a Deus.
Vale lembrar que estamos falando de uma monja medieval, período em que as mulheres eram pouco autorizadas a estudar e menos ainda a ensinar. Teresa se mostra então como alguém à frente de seu tempo, escrevendo e ensinando o caminho espiritual às suas companheiras de claustro.
Já em seu primeiro escrito, a autobiografia intitulada Livro da vida (1562), Santa Teresa define o conhecimento próprio como um pão que alimenta e não deve jamais ser abandonado no caminho da oração (cf. V, 13,15)3. É preciso notar que a santa sempre fará do autoconhecimento uma condição para a vida de oração. Esse ensinamento ela apresenta em suas quatro principais obras: Vida, Caminho de Perfeição, Moradas e Fundações.
O livro das Moradas (ou Castelo Interior) é onde se encontram mais citações sobre o autoconhecimento. Quem conhece a obra, sabe que Teresa define a alma como um castelo, que se divide em sete moradas. No centro deste castelo está Deus, que mora dentro de nós e a cada morada que se adentra, mais a pessoa conhece Aquele que nos habita. Ainda na primeira morada, ou seja, aquela mais superficial, a santa diz:
Não é pequena lástima e confusão que, por nossa culpa, não nos entendamos a nós mesmos nem saibamos quem somos. Não seria grande ignorância, filhas minhas, que se perguntasse a uma pessoa quem é e ela não se conhecesse nem soubesse quem foi seu pai, sua mãe ou a terra em que nasceu? Se isso seria grande insensatez, muito maior, sem comparação, é a nossa quando não procuramos saber quem somos e só nos detemos no corpo. Sabemos que a nossa alma existe apenas por alto, porque assim ouvimos dizer e porque assim nos diz a fé. Mas poucas vezes consideramos as riquezas existentes nessa alma, seu grande valor, quem nela habita; e, assim, não damos importância a conservar sua formosura. Todos os cuidados se consomem na grosseria do engaste ou muralha deste castelo, que são os nossos corpos (M, 1, 1, 2)
Perceba-se que Santa Teresa lastima as pessoas que não se conhecem e fala não de um conhecimento meramente biológico ou corporal, mas saber que aí dentro há uma alma que precisa ser descoberta e considerada. Teresa tem um propósito principal: ao me conhecer, percebo quão fraco e insuficiente sou. Assim, busco conhecer a Deus, aquele capaz de me sustentar e me salvar, apesar de mim:
“Muitas vezes Deus quer que Seus escolhidos sintam essa miséria e, assim sendo, afasta um pouco o Seu favor. Isso é bastante para que nos conheçamos bem depressa. E logo se entende essa maneira de prová-los; o seu objetivo é fazê-los compreender sua falta de modo muito claro. Às vezes, dá-lhes mais pesar verem-se aflitos pelas coisas da terra, não muito graves, do que pelo sentimento da própria miséria. Neste caso, Deus mostra, a meu ver, grande misericórdia por eles. Embora haja falta, a humildade sai lucrando muito com isso. (M, 3, 2, 2)
Mesmo sendo mestra da oração, não se importou em arriscar-se a dizer que é muito mais graça de Deus um dia de humilde autoconhecimento do que muitos dias de oração (cf. F, 5, 16), mostrando que ambos não só andam juntos, mas são fundamentais um à outra.
A sabedoria de Santa Teresa soube unir muito bem a busca de si mesmo com a busca de Deus. Ela é uma verdadeira antropóloga que, à limitação de sua época e estado de vida, valorizou a condição humana. Foi contra vertentes de pensamentos que tendenciaram desprezar nossa corporeidade e humanidade. Em poucas palavras, Santa Teresa foi humana: não exigiu de suas filhas espirituais nada mais que se confiassem à bondade de Deus e fossem transparentes consigo mesmas, sabendo que, embora reconhecendo a humildade de suas servas, Ele poderia fazer maravilhas em seu nome4, um testemunho que se perpetuou pelos séculos!
- Frei Harisson é frade carmelita da Província Carmelitana Pernambucana, estudante de Filosofia da Faculdade Católica de Pernambuco ↩︎
- Conhecida como Santa Teresa de Jesus, nascida em 28 de março de 1515, em Alba de Tormes e falecida em 4 de outubro de 1582, Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada, foi uma freira carmelita, mística e santa católica do século XVI, importante por suas obras sobre a vida contemplativa e espiritual e por sua atuação durante a Contrarreforma. Foi também uma das reformadoras da Ordem Carmelita e é considerada cofundadora da Ordem dos Carmelitas Descalços, juntamente com São João da Cruz. Em 1622, quarenta anos depois de sua morte, foi canonizada pelo papa Gregório XV. Em 27 de setembro de 1970, Paulo VI proclamou-a uma Doutora da Igreja e reconheceu seu título de Mater Spiritualium (Mãe da Espiritualidade), em razão da contribuição que a santa proporcionou à espiritualidade católica. Seus livros, inclusive uma autobiografia (“A Vida de Teresa de Jesus”) e sua obra-prima, “O Castelo Interior” (em castelhano: El Castillo Interior), são parte integral da literatura renascentista espanhola e do corpus do misticismo cristão. Suas práticas meditativas estão detalhadas em outra obra importante, o “Caminho da Perfeição” (Camino de Perfección). Depois de sua morte, o culto a Santa Teresa se espalhou pela Espanha durante a década de 1620 principalmente durante o debate nacional pela escolha de um padroeiro, juntamente com Santiago Matamoros. (Fonte: site Wikipédia) ↩︎
- Para citações das Obras Teresianas, se usará a notação abordada nas “Obras Completas de Santa Teresa de Jesus” das edições Loyola de 2015, que consistem em abreviação do livro (V para Vida, C para Caminho, M para Moradas e F para Fundações, o número do capítulo e o número do parágrafo. ↩︎
- Cf. Lucas 1, 46, 54 ↩︎