Sobre o Repertório do Tempo Pascal
Frei Wanderson Luiz Freitas, O. Carm.1
(Publicado originalmente na Revista de Liturgia, ano 51, nº 302 – março/abril 2024)

O chamado “Ciclo Pascal” constitui-se do tempo da Quaresma, do Sagrado Tríduo Pascal e do Tempo Pascal. Aqui, tudo gravita em torno do Tríduo Pascal, que é preparado pela Quaresma e ampliado no Tempo Pascal. Lançaremos um olhar sobre as características que dominam o repertório desse ciclo.
Como sempre, o repertório escolhido deve estar a serviço da ação ritual; mais do que isso, ele é a própria ação ritual cantada, a partir dos textos que formam o tecido da celebração. Levando em conta que o texto das chamadas partes fixas é invariável (exceto para a 3ª forma do Ato Penitencial), o que vai caracterizar de maneira muito marcante o repertório desse período são os cantos próprios, sobretudo as antífonas de entrada e comunhão (constantes do Missal Romano e do Graduale) e, mesmo que não tão acessíveis assim, as antífonas de ofertório (presentes unicamente no Graduale)2. Aliadas às leituras bíblicas e à eucologia, elas estruturam a celebração e nela imprimem caráter específico, funcionando para a assembleia celebrante, dessa maneira, como portas de entrada ao Mistério.
Pela ordem do tempo, temos, primeiramente, a Quaresma, que “visa preparar a celebração da Páscoa” e “dispõe para a celebração do mistério pascal tanto os catecúmenos, pelos diversos graus de iniciação cristã, como os fiéis, pela comemoração do Batismo e pela penitência”3. É importante lembrar que os cantos desse período (como de todos os outros tempos) não devem ser uma descrição ou catequese sobre o espírito do tempo litúrgico em questão. Devem, pela força própria da Palavra de Deus (daí a insistência no uso dos textos bíblicos ou de inspiração bíblica), nos pôr em movimento, com todo o nosso ser, na dinâmica espiritual daquilo que se celebra.
A título de exemplo, a antífona de entrada da Quarta-feira de Cinzas nos proporciona um ingresso de cheio no espírito do tempo quaresmal, cuja atenção se volta não simplesmente aos nossos pecados, mas à misericórdia divina que aceita nosso esforço de conversão, nos purifica e nos faz novos em Jesus Cristo: “Ó Deus, vós tendes compaixão de todos e não rejeitais nada que criastes; fechais os olhos aos seus pecados por causa da penitência e os perdoais, porque sois o Senhor nosso Deus”4.
No primeiro domingo da Quaresma, conhecido como das Tentações, dirigimo-nos com Cristo ao deserto, e lá ouvimos do Pai uma palavra que nos enche de confiança no caminho: “Ele me invocará e eu o ouvirei; hei de livrá-lo e glorificá-lo, vou saciá-lo com longos dias”5. Repletos dessa confiança, pedimos a Deus que possamos “progredir no conhecimento do mistério de Cristo e corresponder-lhe por uma vida santa”6. Aqui há um perfeito diálogo entre o canto que abre a celebração e a primeira oração presidencial. Note-se a conexão que há entre textos que, numa leitura superficial, não têm ligação alguma.
No segundo domingo, o da Transfiguração, expressamos, logo na abertura da celebração, o desejo que tem cada ser humano de contemplar a face de Deus, manifestada e revelada na face de Cristo, que se transfigura no alto da montanha: “Meu coração vos disse: busquei a vossa face, é vossa face, Senhor, que eu procuro. Não desvieis de mim o vosso rosto”7. Na liturgia, o Pai realiza o nosso pedido, e se-nos dá a conhecer pelo rosto transfigurado de Jesus. Com o próprio Cristo, subimos com a montanha e ouvimos a voz do Pai: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!”8. Esse diálogo entre nós, povo de Deus reunido em assembleia, e o próprio Deus, no 2º domingo da Quaresma, é inigualavelmente manifestado pelos cantos próprios desse dia.
Isto é só um pequeníssimo ensaio de leitura orante dos textos dos cantos próprios dessas três celebrações quaresmais. Eles nos envolvem, tomam nossos corações e nossos corpos e nos fazem experimentar o Mistério que a nós se comunica. Por isso, não podem ser ignorados e, em seu lugar, vermos executada qualquer coisa só porque grupo ou movimento X “acha bonito” ou porque está “na moda”.
No Hinário Litúrgico da CNBB encontramos diversas opções de versões desses textos e, nos últimos anos, a cada Quaresma, a CNBB tem publicado uma seleção de cantos que vêm se somando ao repertório já existente e consolidado, preenchendo algumas lacunas e ampliando o leque de possibilidades. Se não é possível ainda à determinada assembleia o uso dos cantos próprios, podemos contar, naturalmente, com cantos de caráter mais genérico, cuja possibilidade de emprego é prevista pela IGMR; no entanto, não devemos nos contentar com meia dúzia deles ou, ainda pior, com um só, como é o caso de comunidades que cantam, por exemplo, o mesmo canto de entrada do início ao fim da Quaresma, deixando-a sem rosto e desfigurando suas cores sonoro-verbais próprias.
O Tríduo Pascal é repleto de particularidades que tornam o seu repertório único e mereceria tratamento à parte. Basta lembrarmos, a título de exemplo:
- Na Quinta-feira Santa: o canto do rito de lava-pés, “Jesus erguendo-se da ceia”, e da apresentação das oferendas “Onde o amor e a caridade”, na quinta-feira santa, na Missa Vespertina na Ceia do Senhor;
- Na Sexta-feira da Paixão, Celebração da Paixão do Senhor, os “Lamentos do Senhor” e o hino “Fiel madeiro da santa Cruz”, para a adoração da Cruz;
- Na Vigília Pascal, a Proclamação da Páscoa, a entoação solene do Aleluia, os cantos da liturgia batismal, etc.
No caso do Tríduo, o princípio da reserva simbólica se impõe naturalmente, já que os seus cantos são, de maneira geral, executados aquela única vez durante todo o ano. Mesmo que se queira variar as melodias, é fundamental, ao menos por um determinado grupo de anos, que permaneçam sempre as mesmas. Muitas já se tornaram caros à assembleia e marcam aquela celebração com muita força, e sua a repetição irá favorecer uma participação muito mais eficaz à assembleia.
O Tempo Pascal é constituído pelos cinquenta dias que vão do Domingo de Páscoa ao Domingo de Pentecostes. O Domingo de Páscoa é, ao mesmo tempo, final do Tríduo Pascal e início do Tempo da Páscoa. Os dias desse tempo devem ser “celebrados com alegria e exultação, como se fossem um só dia de festa, ou melhor, ‘como um grande domingo’”9. Os textos próprios desse período anunciam a razão da nossa alegria: “Nosso Cordeiro Pascal, Cristo, já está imolado”10, “é ele o verdadeiro Cordeiro, que tirou o pecado do mundo; morrendo, destruiu a morte e, ressurgindo, restaurou a vida”11.
No Domingo da Ressurreição, na Missa do Dia, com alguns versículos adaptados do Sl 13812, o próprio Cristo se apresenta ao Pai e noticia sua ressurreição: “Ressuscitei, e sempre estou contigo, aleluia; pousaste tua mão sobre mim, aleluia; admirável é tua sabedoria, aleluia”13; e ele o faz não sozinho, mas com todos nós que, sepultados com ele no batismo, com ele ressurgimos pela fé para uma vida nova14.
Passando para o 3º domingo da Páscoa, a antífona de entrada traz o seguinte apelo, extraído do Sl 65,1-2: “Aclamai a Deus, terra inteira, cantai salmos a seu nome, glorificai-o com louvores, aleluia”15. É a obra da redenção, culminada na ressurreição de Cristo, o motivo do júbilo e da aclamação. Interessante que o texto dessa antífona não faz referência direta alguma à ressurreição, mas nem por isso ela deixa de ser inteiramente pascal.
Isso pode nos servir de referência na hora de escolhermos os cantos do Tempo Pascal que, a exemplo das antífonas, não precisam afirmar e celebrar a Páscoa de Cristo utilizando-se exaustivamente dos mesmos termos (como “o Senhor Ressuscitou”, “o Senhor ressurgiu”, “Cristo ressuscitou”) durante todo o Tempo Pascal. A alegria e o júbilo pela ressurreição conhecem facetas e desdobramentos que permitem – aliás, até exigem – uma diversidade maior de expressões, como bem o demonstram as antífonas, quer dos domingos, quer dos dias de semana. Às vezes as celebrações do Tempo Pascal podem se tornar até enfadonhas, dada a repetição sempre dos mesmos cantos dizendo as mesmas coisas. A variedade quebra essa monotonia e nos faz saborear espiritualmente outras dimensões do Mistério Pascal.
- Religioso carmelita e compositor litúrgico, da equipe de reflexão em música litúrgica da CNBB e assessor para a música litúrgica do Regional Nordeste 2. ↩︎
- O Tríduo Pascal, dado o caráter bem distinto de suas celebrações, possui um repertório todo particular, para além das três antífonas processionais da celebração eucarística. ↩︎
- Normas Universais do Ano Litúrgico e Calendário Romano Geral, 27. ↩︎
- TEMPO da Quaresma: quarta-feira de cinzas: antífona de entrada. In: MISSAL Romano. Tradução portuguesa da terceira edição típica. 1. imp. Brasília: CNBB, 2023. p. 163. ↩︎
- TEMPO da Quaresma: 1º domingo da Quaresma: Antífona da entrada. In: MISSAL…, op. cit., p. 170. ↩︎
- TEMPO da Quaresma: 1º domingo da Quaresma: Coleta. In: MISSAL…, op. cit., p. 170. ↩︎
- TEMPO da Quaresma: 2º domingo da Quaresma: Antífona da entrada. In: MISSAL…, op. cit., p. 178. ↩︎
- TEMPO da Quaresma: 2º domingo da Quaresma: Antífona da comunhão. In: MISSAL…, op. cit., p. 179. ↩︎
- Normas Universais do Ano Litúrgico e Calendário Romano Geral, 22. ↩︎
- TEMPO Pascal: Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor: Missa do dia: Antífona da comunhão. In: MISSAL…, op. cit., p. 313. ↩︎
- ORDINÁRIO da Missa: Prefácio da Páscoa I. In: MISSAL…, op. cit., p. 466. ↩︎
- Prática comum na Liturgia desde sempre, de tomar os textos bíblicos com liberdade e acomodá-los ao mistério celebrado mesmo que, em seu sentido literal, não estejam vinculados a este ou aquele fato tão explicitamente. ↩︎
- TEMPO Pascal: Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor: Missa do dia: Antífona da entrada. In: MISSAL…, op. cit., p. 313. ↩︎
- Cf. Rm 6,3-5. ↩︎
- TEMPO Pascal: Terceiro domingo da Páscoa: Antífona da entrada. In: MISSAL…, op. cit., p. 330. ↩︎