Atraídos pela amizade com Deus

Frei Davi Maria, O.Carm1

Quando nos deparamos com a palavra atração talvez sejamos levados a pensar em algo físico apenas, entretanto, na vida espiritual a atração existe para nos ajudar a encontrar o Senhor. Nos caminhos do espírito, só conseguimos progredir quando nos deixamos ser tocados e atraídos por Deus que nos chama à amizade com Ele.

Nem sempre é fácil falar de amizade com Deus, pelo fato de que muitas pessoas, por conta da educação humana/cultural e religiosa que tiveram, acabam não olhando para Deus como um bom amigo2. Tal ação prejudica a vida espiritual e impede a quem vive assim de experienciar a amizade com Deus, levando-o a ter outras imagens de Deus que nem sempre condizem com aquilo que Deus é: Pai. Deixar-se ser atraídos pela amizade com Deus pode ser um meio, ou caminho para que muitas pessoas que estão afastadas, voltem e permaneçam com o Senhor.

Em nossos dias carecemos de amizades que sejam verdadeiras e que nos ajudem a ser pessoas plenas e não em dicotomia. Segundo Carmichael, “a amizade perfeita é um relacionamento mútuo que combina três motivos” (2004, p. 34) a saber: um modo que é comum de ser; a atração por um caráter que seja bom e o desejo de ser uma pessoa melhor em vista do outro com quem me relaciono3. Na vida espiritual, se seguimos pela direção destes três motivos mencionados, nós nos aproximamos de Deus porque Ele se encarnou em nossa humanidade e porque n’Ele nós acreditamos possuir a vida em plenitude. A amizade divina deve por isso, pouco a pouco, nos conduzir a um aperfeiçoamento por causa daquele com quem nos relacionamos.

Na Sagrada Escritura podemos encontrar diversos relatos de amizade de Deus com seu povo, evidentemente que se faz necessário contextualizar a narrativa bíblica para uma melhor compreensão4. A partir da imagem da amizade, será que não poderíamos olhar para as alianças no Antigo Testamento, em especial para a encarnação do Verbo, Jesus Cristo e contemplar o modo de como Deus deseja que sejamos seus amigos?

O abraço é uma imagem perfeita que podemos usar para falar da amizade. Neste viés, podemos também contemplar a encarnação do Verbo como um abraço de Deus em nossa humanidade. À medida que crescemos nesta amizade divina experienciamos de maneira ainda mais profunda esse abraço divino. Tal ato podemos viver na vida litúrgica da Igreja, pois, cada sacramento, que é um sinal visível da graça de Deus, é como um abraço que fortalece e estreita ainda mais a amizade do Senhor para com cada um de nós, seus discípulos.

A partir da imagem da amizade podemos observar cada Ordem religiosa – e são muitas na vida Igreja – que possuem um caminho que conduz a Jesus Cristo, e por causa d’Ele e para Ele a vida de todos os que desejam viver uma determinada espiritualidade começa a tomar as características daquela Ordem/família religiosa. As Ordens religiosas são sempre um caminho de amizade com Jesus Cristo. Da mesma forma são também as suas regras. Os(as) diversos(as) fundadores(as) as escreveram impelidos(as) pelo Espírito Santo para que, aqueles(as) que nelas ingressassem, pudessem viver por causa do Senhor. Não é diferente com o Carmelo. A atração ou fascínio pela amizade com Senhor tem marcado as gerações ao longo dos séculos de existência do Carmelo de tal maneira que, podemos compreender a amizade/obséquio com Jesus Cristo como a arte primeira que plasma e forma o coração de cada um que deseja adentrar ao Carmelo para viver de amor e por amor.

A identificação com uma determinada Ordem é sempre um dom de Deus para a vida de quem se sente chamado pelo Senhor, é Ele quem nos atrai mediante nossa abertura e docilidade. É necessário recordar que a abertura e docilidade são manifestas de acordo com a vivência da espiritualidade. Quanto mais alguém se abre interior e exteriormente a viver a espiritualidade de uma Ordem/família religiosa tanto mais se torna claro o chamado de tal pessoa para o seguimento de Jesus Cristo naquela espiritualidade e carisma.

Na vida da Igreja, o Carmelo sempre atraiu diversas pessoas ao decorrer dos séculos para viver a experiência de Deus na Montanha Santa do Carmo, que se dá a todos aqueles que não lhe colocam obstáculos. Por isso, a amizade divina “constitui a viagem interior do carmelita proveniente da livre iniciativa de Deus” (RIVC, n. 28) que nos primeireia antecipando-nos no amor para conosco.

A vida no Carmelo é um dom de Deus para todos aqueles que sentem chamados e se deixam atrair pelo Senhor que habita estas que são as terras mais belas, como nos relembra Elizabete da Trindade. Assim sendo, “a pessoa chamada ao Carmelo reconhece que o carisma e a espiritualidade da Ordem encontram eco no centro do seu coração tocado pelo Deus vivo” (RIVC, n. 25) e se deixa formar por Aquele que a atrai.

Deus que nos ama infinitamente, também nunca sessa de nos atrair para Ele, por isso, se somos atraídos pelo Mistério de Deus que nos chama a amizade com Ele, tanto mais Ele se deixa atrair por nós para nos manifestar o seu amor e nos fazer viver por Ele. Na vida espiritual a atração deve ser sempre recíproca. Nós temos necessidade de Deus porque somos pequenos e frágeis e o Senhor se manifesta a nós porque sabe que sem Ele nada conseguimos realizar.

No Carmelo somos atraídos pelo Mistério de Deus para viver na amizade com Ele, amizade essa que conhecemos por “viver em obsequio de Jesus Cristo” (RC, n. 2) e que constitui o núcleo central da vida carmelita. Sem a amizade com Jesus Cristo é impossível experienciar a plena beleza da vocação carmelita, visto que, a amizade com o Senhor é que nos leva pouco a pouco a nos transformar n’Ele. Nesse viés, podemos então compreender o motivo pelo qual somos convidados a contemplar e viver a formação no Carmelo como um caminho de transformação, pelo fato de que é a amizade com Jesus Cristo que vai nos transformando e nos tornando parecidos com Ele.

Sem a amizade com Jesus Cristo não conseguimos subir a Montanha Santa e nem progredir espiritualmente. É a amizade com o Senhor que nos desvela os segredos do amor divino por nós. Essa amizade a que somos no Carmelo chamados a viver de diversas formas, mas em especial pela oração, não é uma mera ideia ou um pensamento abstrato, é antes de tudo algo real porque Jesus Cristo é real. Assim sendo, Cristo Jesus não é simplesmente o tema da oração e da espiritualidade carmelita, mas sim o fundamento e razão de sua existência. Jesus Cristo é a “Pessoa com a qual o carmelita fala e da qual escuta a Palavra da vida. Cristo é a Pessoa com a qual cada carmelita partilha sua vida. Cristo é o seu projeto de vida” (Carmelo de Cristo Redentor, p. 39) e por isso mesmo “a oração é um desvelamento de Deus e da pessoa em Cristo, um encontro que nos vai tornando semelhantes a Cristo e que nos faz exclamar com Teresa: juntos andemos Senhor” (Carmelo de Cristo Redentor, p. 40).

A atração pela amizade com Deus leva-nos a perceber a profundidade espiritual a que somos chamados no Carmelo a manifestar ao mundo sedento de sentido e razão de ser. É precisamente, no obséquio(amizade) de Jesus Cristo e a partir dele que se encontra o centro da regra carmelita e a identidade espiritual e carismática do Carmelo, não pura e simplesmente como uma norma a ser seguida, mas sim como uma “porta” que nos leva à Fonte que é Jesus, para que assim o imitemos em seus exemplos, participemos do seu destino e tenhamos a vida d’Ele dentro de nós5. Deste modo, a amizade com o Senhor que conhecemos por obséquio se torna para cada carmelita um dom celeste para a concretização da vocação que conduz a uma escuta filial e dócil Assim sendo, Viver em obséquio a Jesus Cristo significa confessar com a boca e, sobretudo, na vida quotidiana, que Jesus é o Senhor, bem cientes de que só Ele nos liberta e nos enche de Si. De fato, o Mistério de Jesus revela aos homens e mulheres de todos os tempos o significado profundo da própria existência (Carta dos superiores gerais O.Carm e OCD, Roma, 2007).

O Carmelo continua ainda apontando para o mundo o sentido mais profundo da vida humana que é viver em amizade com o Senhor. Deixar-se ser atraído por Ele e experienciar essa amizade é uma via de transformação para a vida humana, em especial em nossos dias tão marcados pela dor, pela indiferença e sobretudo pelo fechamento e falta de consciência de que Deus existe e que nos ama infinitamente. A vida de tantos santos do Carmelo é a maior prova de que, quem se deixa ser atraído pela amizade com Jesus Cristo tem sua existência transformada.

Um testemunho sobre a amizade com Deus, mais ou menos próximo, nós encontramos no santo carmelita holandês, Tito Brandsma6. Tito, ao ser levado ao campo de concentração de Dachau, escreve, a caminho um poema que é como “resumo” de toda a sua vida interior, de toda a sua amizade com Jesus Cristo. Diz ele (Dolle, 2014, p. 68-69):

Ó Jesus, ao contemplar-te,  revivo meu amor contigo

Sei que teu coração me ama como predileto amigo. […].

Sinto-me tão próximo de ti como jamais antes senti.

 Doce Jesus, fica comigo, tudo é bom junto de ti!                                                                                         

Apesar do sofrimento, do medo, da frieza humana e da solidão que Tito enfrentava a caminho de Dachau, a certeza de que seu amigo, Jesus Cristo, estava com ele, lhe consolava o coração e o ajudava a seguir seu calvário. Por isso, confiando no divino amigo ele diz: “fica comigo, porque tudo é bom junto de ti”. Só consegue pronunciar tais palavras quem percorreu um caminho de amizade, quem fez da vida um itinerário de comunhão com Jesus Cristo. A vida de Tito Brandsma e de todos os outros santos(as) atestam para nós que é possível ser amigo do Senhor. A amizade com Jesus Cristo não é algo apenas ideal, mas sobretudo real, basta olhar para o testemunho dos diversos santos da Igreja.

Deixar-se ser atraído e transformado pela amizade com Deus talvez seja uma via para reaproximar o homem e a mulher pós-moderno d’Aquele que é seu Pai e criador. Entretanto, ao mesmo tempo que a amizade com o Senhor é um dom é também uma ameaça. É um dom para aqueles que se deixam ser atraídos pelas coisas do céu, é um dom para tantas pessoas que estão afastadas ou não, mas que desejam crescer na comunhão divina, contudo, a amizade com Deus é uma ameaça para aqueles que preferem atrair multidões pelo medo e pela literatura do inferno do que pelo amor de Deus que deseja sim que nos convertamos, mas que também sejamos anunciadores dos seus Mistérios de amor.

Um pequeno lembrete para aqueles que desejam, não obstante suas fraquezas e limitações, ser amigos do Senhor: este caminho é santo e bom: segui por ele…


Referências

BARRY, SJ, William A. Amizade sem igual. Experienciar o surpreendente abraço divino. São Paulo: Edições Loyola, 2023.

Carmelo de Cristo Redentor. A Carmelita uma enamorada de Deus vivo. Avessadas: Edições Carmelo, 2018.

Carta dos superiores gerais, In: GARCÍA, Rosa Maria; ÁVALOS, Rosario. En el Manantial del Carmelo. El carisma carmelita fundamentos y perspectiva. Orihuela: Industrias gráficas libercrom, s.a de Murcia, 2009.

CARMICHAEL, E. D. H. Interpreting Christian love. London: t&t clark internacional, 2004.

DOLLE, Constant. O caminho de Tito Brandsma. Prisioneiro no tempo de Hitler. Trad: Gabriel Haamberg. Belo Horizonte: Editora o lutador, 2014.

MESTERS, Carlos. Ao redor da fonte. Um comentário da regra do Carmo. Belo Horizonte: Editora o lutador, 2013.

Regra do Carmo. Roma: Edizioni Carmelitane, 2007.

Ratio Institutionis Vitae Carmelitane, Roma: 2013.


  1. Frade professo na Ordem dos Carmelitas desde 2017 e Diácono transitório. Licenciado em Filosofia e graduado em Teologia. Membro da Associação dos Liturgistas do Brasil, da Academia Marial de Aparecida e do Instituto de Espiritualidade Tito Brandsma. ↩︎
  2. Barry, 2023, p. 13. ↩︎
  3. Carmichael, 2004, p. 34. ↩︎
  4. Barry, 2023, p. 25 ss. ↩︎
  5. Mesters, 2013, p. 40, 41. ↩︎
  6. 1881, 1942. ↩︎

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